Ana Lago de Luz

E na beleza das flores... e nas ondas do mar!

Textos


A Última Estrofe 

 

Na névoa cinzenta das madrugadas da metrópole, Martins arrastava os pés descalços sobre calçadas frias, carregando nos bolsos do casaco surrado mais do que garrafas vazias: levava consigo o peso de um nome que ninguém mais pronunciava. Seus dias eram um labirinto de esquinas sujas, de olhares que atravessavam seu corpo como se ele fosse feito de vidro fumê. Às vezes, quando o álcool o deixava em paz por alguns segundos, ele ouvia o eco de risos infantis — os de Maria e João, seus filhos —, misturados ao cheiro de terra molhada do sertão. Era assim que a saudade o encontrava: como uma faca cega, cortando devagar.

Virgílio o viu pela primeira vez em frente ao velho cinema abandonado da Rua das Figueiras. Enquanto os outros passantes cruzavam a rua para não esbarrar em Martins, o escritor parou. Havia algo naqueles olhos embaçados, mas ainda capazes de fitar o horizonte como quem espera um trem que nunca chega, que o fez se aproximar. "Qual é a sua história?", perguntou, segurando um caderno de capa gasto. Martins riu, um som rouco de quem havia esquecido como se ri. "História? Isso aqui é só um resto de vida, moço."

Mas Virgílio insistiu. Todas as noites, levava-lhe café e palavras. Aos poucos, entre goles de cachaça e silêncios, Martins deixou escapar fragmentos: o amor de Marta, a mulher de olhos verdes que morreu de desgosto quando a seca levou a plantação; a promessa quebrada de voltar rico para os filhos; a carta nunca enviada, amassada no fundo da mala que perdeu em uma briga de beco. Virgílio escrevia tudo, transformando a dor do outro em versos que doíam nas mãos. "Você devia voltar para eles", ele dizia, enquanto Martins encolhia os ombros. "Tarde demais. Nem meus fantasmas me reconhecem agora."

Enquanto isso, nas sombras da cidade, um rumor se espalhava entre os jovens das altas esferas: um "jogo" perverso, onde pontos eram dados por cada mendigo assustado, machucado, destruído. Eles chamavam de "Caça às Sombras", e suas gargalhadas ecoavam em carros velozes que cortavam a madrugada como facas.

Na noite em que Virgílio finalmente conseguiu um telefone para Martins ligar para o Nordeste, a chuva caía densa. O escritor correu até o beco onde o amigo dormia, mas encontrou apenas o casaco encharcado e o caderno aberto no chão, as páginas manchadas de vermelho. As últimas anotações eram um borrão: "Martins me contou hoje que sonhou com Marta. Disse que ela o chamava para casa. Talvez ele finalmente...".

Os jornais do dia seguinte trouxeram uma nota breve: "Homem em situação de rua é vítima fatal de espancamento". Nenhum nome. Ninguém veio buscar o corpo.

Virgílio publicou o livro meses depois: "Versos para um Homem Invisível". Na orelha, uma foto desbotada que Martins carregava: uma mulher sorridente, duas crianças pequenas segurando um cachorro magro. O epílogo era uma carta, endereçada a Maria e João, assinada por um pai que pedia perdão em cada sílaba. O livro virou best-seller, e as doações para abrigos de moradores de rua dispararam. Nas entrevistas, Virgílio repetia: "Ninguém é apenas um resto. Todo mundo carrega um mundo dentro do peito".

Na noite do lançamento, enquanto os aplausos enchiam o teatro, um vulto esfarrapado passou rápido pela vitrine iluminada. Ninguém viu. Mas, por um instante, o eco de um riso infantil — leve, quente, como o cheiro da chuva no sertão — pareceu pairar sobre a cidade.

Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 12/05/2025
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