Ana Lago de Luz

E na beleza das flores... e nas ondas do mar!

Textos


A Casa das Palavras

 

 

 

Aos sete anos, Clarice perdeu a mãe para uma doença sem nome nos prontuários do hospital municipal. O pai, uma figura ausente que habitava apenas perguntas sem resposta, deixou-a órfã de passado. Sem parentes, foi acolhida pelos Martinelli, vizinhos de ascendência italiana cuja casa cheirava a manjericão fresco e cansaço. A família — composta pelo severo mas bondoso Sr. Luigi, a calorosa Sra. Giovanna, a avó Nonna Rosa de mãos calejadas, e os três filhos, Enzo, Luca e Matteo — tornou-se seu porto seguro. Clarice, a menina de olhos grandes e silêncio eloquente, encontrou nas palavras seu refúgio. Escrevia poemas sobre a ausência e contos sobre portas que nunca se abriam.

Nos primeiros meses, Clarice observava. A casa dos Martinelli era um teatro de gestos amplos, discussões em italiano e risadas que ecoavam até a madrugada. Enzo, o mais velho, protegia-a das brincadeiras de Luca, o caçula travesso, enquanto Matteo, o do meio, a ensinava a jogar futebol com uma bola de meia. Nonna Rosa, porém, foi quem a conquistou: nas tardes de domingo, enquanto moldavam gnocchi na mesa de madeira, a avó contava histórias de Nápoles e sussurrava, "Scrivi, piccola. Le parole curano ferite que nem o tempo alcança." 

Clarice escrevia. Sobre Giovanna, que cantava ópera enquanto lavava a louça; sobre Luigi, cujas mãos trêmulas seguravam fotos antigas de uma Itália que ele não via há décadas; sobre os irmãos, que a incluíam em aventuras pelos telhados do bairro. Em seu caderno de capa azul, a família ganhava vida — uma versão perfeita, até que um dia Matteo a flagrou lendo um conto em voz alta no sótão. "Por que você nos inventa felizes?" ele perguntou, apontando para a cena em que Luigi abraçava os filhos. "Meu pai nem lembra nosso aniversário." Clarice, então, riscou o parágrafo e reescreveu: "A felicidade, às vezes, é uma escolha — mesmo que doa um pouco."  

Na adolescência, as palavras viraram armas. Escrevia sobre o medo de ser deixada para trás, sobre a raiva de um pai fantasma, e sobre o desejo secreto de que Giovanna a chamasse de "filha". Quando Luca encontrou seus textos escondidos sob o colchão, os irmãos prometeram guardar seu segredo. Juntos, criaram um código: um lenço vermelho na janela do sótão significava que Clarice precisava de silêncio para escrever. Em troca, ela os incluía em suas histórias como heróis — Enzo, o líder corajoso; Luca, o inventor genial; Matteo, o poeta que escondia versos nos bolsos.  

Aos dezoito anos, Clarice deixou a casa dos Martinelli para estudar Letras. Na despedida, Nonna Rosa entregou-lhe um caderno novo, com folhas em branco e uma inscrição em italiano: "Chi scrive, vive due volte." (Quem escreve, vive duas vezes). No apartamento minúsculo da cidade grande, as paredes ganharam prateleiras cheias de livros e um quadro: uma foto dos seis na varanda, com Clarice sorrindo entre os irmãos.  

Seu primeiro livro, "O Sótão dos Martinelli" , misturava ficção e memória. Nas entrevistas, ela dizia: "Escrevo para não esquecer que a família pode nascer de portas arrombadas pela vida." Luigi chorou ao ler o capítulo sobre seu orgulho silencioso; Giovanna pendurou uma resenha do jornal na geladeira, ao lado de desenhos infantis.  

Na última página, Clarice deixou uma frase roubada de Nonna Rosa:  

"A saudade é um verso que a gente carrega no peito — e, se tiver sorte, vira história para contar."  

Clarice nunca encontrou o pai, mas descobriu que os laços mais fortes são tecidos com fios de acaso e tinta. Os Martinelli, agora com cabelos grisalhos e risadas que ecoam em netos, ainda deixam o sótão aberto — sempre com um caderno extra na mesa, caso ela precise escrever.

Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 09/05/2025
Copyright © 2025. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras