Ana Lago de Luz

E na beleza das flores... e nas ondas do mar!

Textos


O Último Segredo do Mar

 

Ainda está escuro quando saio. O vento corta como faca, mas já nem sinto. O barco range, velho como eu. Chamo ele de Maria das Ondas, nome que ela deu. Trinta anos sem ela, e o barco ainda chia o mesmo. A rede tá rasgada de novo — vejo os furos à luz do lampião, buracos por onde os peixes e as horas escapam. Rezo pra que hoje seja diferente. Rezo pra que não seja.

O mar não é Deus, mas exige fé. Aprendi isso com meu pai, que sumiu nele quando eu tinha doze. "Firmino, o mar dá e o mar toma", ele dizia, cuspindo tabaco na areia. Levou meu irmão mais novo também, dez anos atrás. Agora só sobra a espuma branca pra contar histórias. E eu, claro. Eu, que insisto em desafiar o sal e o sol .

Puxo a rede. Os dedos deformados do reumatismo dobravam como ganchos, mas hoje... hoje algo pesa. Não é peixe. É uma garrafa. Verde  musgo grudado no vidro. Dentro, um papel. Minhas mãos tremem mais que o normal. Abro-a com a faca de escamar, e o cheiro de maresia antiga me ataca. A caligrafia é dela. Maria.

"Se um dia você encontrar isso, Firmino, saiba que não te culpo. A febre veio rápido, mas a solidão doeu mais. Você sempre amou o mar mais que a mim."

O peito aperta. Lembro do dia: vento norte, promessa de bonança. Deixei ela tossindo sangue no colchão de palha, fui atrás de um pargo pra pagar o remédio. Quando voltei, já estava fria. O peixe apodreceu na porta do curandeiro.

A garrafa range nos meus joelhos. Minto pra mim mesmo há décadas: "Ela entenderia". Mas o mar não mente. Ele devolve os ossos, as cartas, as verdades. Jogo a rede de novo, mas o que puxo agora sou eu — menino assustado, marido ausente, velho amargurado. 

O sol nasce cor de ferrugem. Na praia, vejo o vulto do Seu Zé, o único que ainda me cumprimenta. Grito, pela primeira vez em anos: "Tem café aí?". Ele hesita, depois acena. 

Agarro o remo. O mar sussurra, mas hoje viro as costas. Deixo a garrafa vazia boiando, mensagem pra ninguém. A rede rasgada? Que fique. Talvez, hoje, eu pesque perdão.

Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 28/04/2025
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