![]() Levados pelo vento
Daniel apertou os punhos até as unhas marcarem sua pele. O céu estava cinza, pesado, como se também carregasse o mesmo peso que agora entupia seu peito. O velho relógio da praça, aquele que seu pai sempre consertava, parou no mesmo instante em que ele havia caído—no meio da rua, com um barulho seco que Daniel ainda ouvia nos pesadelos. Seu pai, Antônio, era um homem de mãos calejadas e sorriso fácil. Consertava relógios, sim, mas também consertava silêncios. Sabia escutar, sabia rir baixo quando era preciso, sabia fazer café forte e do jeito certo. "Tudo na vida tem seu tempo", ele dizia, enquanto ajustava engrenagens com paciência de ourives. Mas o tempo dele fora roubado num dia qualquer, numa esquina qualquer, por um tiro que não devia ter sido disparado. Os jornais chamaram de "assalto seguido de latrocínio". Um crime bobo, um desses que viram estatística. O homem de terno no enterro—um delegado, disseram—falou em "justiça", mas Daniel via nos olhos dele a mesma frieza do revólver que cintilou sob a luz do poste. Os adultos sussurravam, diziam que ele "tinha de ser forte", mas Daniel não queria ser forte. Queria que o chão se abrisse e engolisse o homem de terno que sorria no enterro, o mesmo que apertou sua mão com fingida tristeza. Queria que o vento levasse tudo—as flores artificiais, os discursos vazios, até o cheiro de café que seu pai deixara na xícara esquecida. Na escola, Daniel começou a se afundar em si mesmo. As palavras dos professores ecoavam distantes, como se ele estivesse debaixo d'água. Às vezes, pegava o relógio de pulso que Antônio lhe dera—um modelo antigo, que não funcionava mais—e ficava girando a coroa, imaginando que, se conseguisse fazê-lo andar de novo, talvez o mundo também voltasse a fazer sentido. Naquela noite, Daniel subiu no telhado, onde seu pai costumava apontar as constelações. "Aquela ali é Órion", ele dizia, "o caçador. Mas o segredo mesmo tá nas estrelas que a gente quase não vê." O céu estava limpo, as estrelas frias e distantes. Daniel respirou fundo, o ar cortando sua garganta, e gritou. Não uma palavra, não um nome—apenas um som rouco, quebrado, que se perdeu na escuridão. Quando desceu, trouxe consigo o silêncio. E os olhos secos. E a certeza de que, um dia, o relógio da praça voltaria a funcionar. Mas não hoje.
Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 20/04/2025
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