![]() Na calada da noite
- Rio de Janeiro, 1975 -
O ar noturno carregava o cheiro de chuva recente e o sal do mar. Raul caminhava sem destino, como sempre fazia quando as memórias o sufocavam. Seus pés descalços (sim, ele preferia sentir o chão, mesmo que cortasse seus pés) arrastavam-se sobre o asfalto úmido. O corpo, marcado por cicatrizes que não doíam mais fisicamente, ainda tremia quando um carro passava rápido, quando uma porta batia. Foi então que a viu. Josi estava debruçada no parapeito de uma ponte velha, olhando o rio escuro abaixo. Seu vestido rodava levemente com a brisa, e Raul pensou, num impulso absurdo, que ela podia pular. Ou talvez fosse ele projetando seu próprio desejo mudo de desaparecer. — Se for pular, me avisa antes — disse ele, parando a alguns passos dela. Ela virou o rosto, surpresa, mas não assustada. Seus olhos eram grandes, quase negros, e algo neles fez Raul engolir seco. — Por quê? Você ia pular atrás? — A voz dela era suave, mas desafiadora. — Não. Mas ia gritar "não faça isso" só pra cumprir o protocolo. Ela riu, um som rouco, inesperado. — Eu não tô aqui pra pular. Tô aqui pra lembrar. Raul não perguntou do que . Ele sabia demais sobre lembranças. Sentaram-se no meio-fio, compartilhando um cigarro que Josi tirou do bolso. Ela olhou para as cicatrizes em seus braços, visíveis mesmo na penumbra. — Fizeram isso com você? — perguntou, sem rodeios. Raul fechou os olhos por um segundo. — Fizeram. E eu deixei. Ela não respondeu com um "não foi sua culpa". Em vez disso, disse: — Eu também deixei. E então Josi abriu o colo do vestido, apenas o suficiente para mostrar uma queimadura antiga, em formato de estrela, sobre o coração. — Meu pai era do exército. Achava que dor era uma forma de amor. Raul sentiu um nó na garganta. Sem pensar, estendeu a mão, mas parou antes de tocar, hesitante. — Pode — ela sussurrou. Seus dedos roçaram a marca, leves como um sopro. — Dói? — Todo dia. Mas não do jeito que você imagina. Ele entendeu. A dor não vinha mais da carne, mas daquilo que a cicatriz representava: a perda de algo que nunca foi dado direito. Josi inclinou-se para frente, até que suas testas quase se tocassem. — A gente não precisa ter medo do toque, Raul. Ele tremeu. Ninguém dizia seu nome assim, como se fosse algo precioso. — Eu não sei como não ter medo — confessou, a voz quebrada. — Então finge. Finge até esquecer que tá fingindo. E naquela noite, no quarto barato de um hotel de beira de estrada, eles descobriram que os corações partidos batem no mesmo ritmo. Josi traçou cada cicatriz de Raul com os lábios, como se pudesse, com isso, reescrever sua história. E ele, pela primeira vez, chorou sem vergonha, seu rosto escondido no pescoço dela. — Você não vai me salvar — ele disse, num sussurro. — Eu sei — ela respondeu. — E você não vai me salvar também. Mas a gente pode se lembrar, juntos, de como é estar vivo. Quando o sol nasceu, Josi já não estava lá. Mas na mesa, ao lado da cama, ela deixara um bilhete: "Até a próxima vez que a noite for pesada demais pra carregar sozinho." Raul sorriu, pela primeira vez em anos.
Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 18/04/2025
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