Ana Lago de Luz

E na beleza das flores... e nas ondas do mar!

Textos


Vivenciar o luto 

 

O carro estacionou em frente à casa, mas ninguém se moveu para sair. A chuva havia parado, mas o ar dentro do veículo ainda cheirava a terra molhada e a flores murchas—o cheiro do enterro.  

Juracy, com as mãos ainda no volante, sentia o vazio como um peso físico. Ela sempre soube que um dia seria só ela, mas não assim. Não com essa raiva surda no peito, essa culpa por não ter chorado, por ter pensado, no meio do velório, "Agora você me deixou com eles." Os filhos eram adultos, sim, mas ela ainda os via como crianças—especialmente Frederico, frágil, sempre à beira de desmoronar. E Daniel, tão parecido com o pai que doía. Ela os amava, mas agora também os temia. Eles eram os últimos elos a ele, e isso a aterrorizava.  

Daniel olhava para a casa através do vidro embaçado. Ele não chorara. Nem uma lágrima. Só um nó na garganta, apertado como um punho. O pai nunca fora um homem de afeto—sempre durão, sempre cobrando mais. Mas agora, morto, ele se tornara algo maior, um fantasma que Daniel não sabia como enfrentar. "Você vai ter que cuidar deles agora",  era o que o velho teria dito. Mas Daniel não queria ser o próximo patriarca. Queria ser livre. Queria sumir. E isso o enchia de vergonha.  

Frederico, no banco de trás, mordiscava a pele ao lado da unha até sangrar. Ele sempre fora o "sensível", o que o pai dizia que "precisava  se compor". Agora, o velho se fora, e Frederico não sabia se estava aliviado ou desesperado. Aliviado porque nunca mais ouviria "Quando você vai virar homem?" Desesperado porque, sem aquela voz áspera puxando-o para a realidade, quem ele seria? Um poeta fracassado? Um filho que nunca chegou perto de ser suficiente? Ele olhou para as costas do irmão mais velho e sentiu uma pontada de inveja—Daniel sempre soube como ser forte.  

Juracy desligou o motor. O silêncio foi como um corte.  

Dentro de casa, tudo cheirava a passado. A poltrona do pai ainda estava ligeiramente reclinada, o livro que ele lia aberto na mesa, como se ele fosse voltar a qualquer momento. Juracy evitou olhar. Ela não queria lembrar os últimos meses—a doença, a impotência dele, a maneira como ele a agarrava de madrugada e sussurrava "Não me deixe virar um fardo." Ela prometera. E agora, aqui estava ela, sem saber se cumpriu ou falhou.  

Daniel parou no meio da sala, os punhos cerrados. Ele queria gritar. Queria quebrar algo. Queria que o irmão olhasse para ele e dissesse "Eu também estou perdido", mas Frederico só encostou na parede e deslizou para o chão, abraçando os joelhos como um menino.  

Frederico olhou para as mãos. Elas tremiam. Ele sempre achara que, quando o pai morresse, algo dentro dele se acertaria. Mas agora só havia um buraco. Ele queria dizer algo—para a mãe, para o irmão—mas as palavras eram como pedras na garganta.  

Juracy foi até a cozinha. Encheu um copo d’água, mas não bebeu. Olhou para a foto na geladeira—eles, anos atrás, na praia. O mar ao fundo, infinito. Ela queria aquele momento de volta. Queria um tempo em que o futuro ainda era algo a ser construído, não apenas suportado.  

Daniel sentou à mesa da sala, os dedos traçando círculos na madeira. Ele devia dizer algo. "Vai ficar tudo bem", talvez. Mas seria mentira. Nada ficaria bem. O pai se fora, e eles estavam todos quebrados, cada um à sua maneira.  

Frederico fechou os olhos. Se ao menos pudesse dormir e acordar em um mundo onde a dor fosse opcional.  

O relógio da parede marcando a hora. 

Juracy deixou o copo na pia. Daniel ergueu a cabeça. Frederico abriu os olhos.  

Nenhum deles falou.  

O silêncio era a única coisa que ainda os mantinha unidos.

 

Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 16/04/2025
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