Ana Lago de Luz

E na beleza das flores... e nas ondas do mar!

Textos


O Que Ficou Por Dizer 

 

Edgar tinha medo do vazio. Desde criança, aprendera que o silêncio era um lugar perigoso—era quando os pensamentos vinham, afiados, lembrando-o de todas as vezes em que não fora o suficiente. Por isso, ele preenchia os espaços entre ele e Silvana com brincadeiras ácidas, provocações, discussões que a mantinham olhando para ele, mesmo que fosse com raiva. " Melhor o fogo do que o vácuo."   

Silvana, por sua vez, temia o fogo—mas também não sabia viver sem ele. Filha de um casamento que se dissolveu em indiferença, ela associara o amor à intensidade. Se Edgar não gritava, se não a desafiava, ela se perguntava: " Ele ainda se importa? " Suas brigas eram uma forma grotesca de confirmação. " Se me machuca, é porque ainda me quer." 

Naquela tarde, o gatilho foi trivial—um celular esquecido, uma mensagem não respondida—, mas a ferida era mais profunda.  

— Você nunca me escuta! — Silvana cuspiu as palavras, os olhos marejados.  

— Porque você só sabe falar em tom de acusação! — Edgar respondeu, o queixo tremendo. Não era só raiva; era o pavor de que, por trás daquela discussão, houvesse uma verdade que nenhum dos dois queria encarar: talvez estivessem perdendo um ao outro, e nem soubessem como consertar.  

Quando ele saiu, batendo a porta, Silvana ficou parada no meio da sala, o peito latejando. "Por que fazemos isso conosco?" pensou, mas a orgulhosa que havia nela não a deixou correr atrás dele. " Deixa que ele volte. Sempre volta."   

Só que, dessa vez, o destino interveio.  

O telefone tocou às 21h37. Um policial, voz contida: "Senhora, houve um acidente..."  

E, de repente, todos os medos de Edgar se materializaram—o vazio chegou, implacável.  

No velório, Silvana encostou os lábios na testa fria dele e sussurrou:  

— Eu só queria que você soubesse… Eu brigava porque tinha medo de que um dia você parasse de lutar por mim. 

Mas era tarde. Edgar não estava mais lá para ouvi-la—e ela não estava mais lá para ouvir o que ele nunca dissera: que discutia com ela porque, no fundo, acreditava que não merecia ser amado.  

No dia sseguinteas xícaras de café continuavam na mesa, duas, como sempre. Silvana olhava para a dela, fria e intocada, enquanto a de Edgar—a que ele usara na última  manhã, antes da última briga—ainda mantinha um resto amargo no fundo. Ela não tinha coragem de lavar.  

O apartamento estava cheio desses vestígios: a camisa pendurada atrás da porta, o cheiro do seu perfume no banheiro, os sapatos largados no corredor como se ele fosse chegar a qualquer momento e resmungar: "Silvana, de novo você não guardou minhas coisas?"  

Ela queria ouvir isso. Queria que ele chegasse irritado, batendo a porta, arrancando dela um "Ah, cala a boca, Edgar!" que terminaria em risadas ou em sexo contra a geladeira, como sempre acontecia.  

Mas o silêncio era o único que gritava.   

A primeira vez que brigaram, foi no cinema. Edgar tinha chegado atrasado, e Silvana, de pé no meio do shopping, os olhos ardendo de indignação:  

— Você não respeita meu tempo! 

Ele a puxou pelo braço, sério, e disse algo que a pegou de surpresa:  

— Eu me atrasei porque estava comprando aquela edição de " O morro dos ventos uivantes "  que você queria. A livraria estava lotada.  

Ela abriu a boca, mas nenhum som saiu. Edgar soltou um suspiro exasperado e enfiou a mão no bolso, tirando o livro amassado da pressa.  

— Toma. Agora podemos brigar de verdade. 

Ela riu. Ele riu. E, naquela noite, fizeram as pazes de um jeito que deixou claro: entre eles, até a raiva era uma forma de amor.  

Ela lembrava do tempo que passou.  

— Você está sendo paranóica! Edgar rosnou, segurando o celular.  

— Paranóica? Você esconde as mensagens! Silvana puxou o aparelho da mão dele, e ele não resistiu.  

Quando ela abriu a conversa, viu apenas uma discussão boba com um amigo sobre futebol. Edgar cruzou os braços, triunfante.  

— Tá feliz? 

Ela sentiu um calor subir pelo rosto. Em vez de pedir desculpas, atirou o celular no sofá e deu um passo para trás.  

— Você podia ter mostrado logo!  

Ele a agarrou pelo pulso antes que ela fugisse.  

— Eu gosto quando você fica com ciúmes. Quer dizer que ainda se importa. 

Ela disse um "Idiota", mas deixou que ele a puxasse para um abraço.  

As lembranças nao paravam :

— Por que a gente não para com isso? Silvana perguntou, de repente, depois de uma reconciliação particularmente intensa.  

Edgar, deitado ao seu lado, virou o rosto para ela.  

— Com o quê? 

— De ficar se machucando assim. 

Ele ficou quieto por um tempo.  

— Talvez porque a gente sabe que, no fim, sempre vai ter o outro ali. Então dói, mas não quebra. 

Ela não respondeu. Agora, gostaria de ter dito: "Não era verdade. A gente quebrava sim. Só não sabia que um dia ia ser pra sempre."  

E o desespero, a falta, parecia so aumentar .  

Na terceira semana sem ele, Silvana caiu no chão do banheiro, abraçando o vidro de perfume  como se fosse um amuleto. Cheirou-o até sentir a cabeça girar, até que seu nariz não reconhecesse mais nada além daquela fragrância.  

— Por que você foi embora assim? — ela chorou, sabendo que não havia resposta.  

Naquela noite, sonhou com ele. Estavam brigando, como sempre, mas, de repente, Edgar parou e a olhou nos olhos.  

— Você sabe que eu te amo, né? 

Ela acordou com o rosto molhado.  

Pela primeira vez, não havia reconciliação possível. Apenas o vazio—e a terrível compreensão de que, no fim, o maior medo de Edgar tinha sido o dela também: o silêncio que vem quando não há mais ninguém para brigar.  

 

 

 

 

 

 

Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 08/04/2025
Copyright © 2025. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras