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O suicídio anunciado Já estamos no outono e ainda faz dias quentes, eu disse para o Durval pegar uma mesa lá fora. Está mais fresco e posso fumar.Chegamos mais cedo e o garçom trouxe logo a cerveja . Que bom que estava gelada. Durval tinha um semblante triste, aparecia rugas em sua testa. Olhava toda hora no relógio. Sua respiração estava ofegante.Dava para sentir isso nele. Não tínhamos o que conversar , o silêncio pairava dissonante ao barulho dos carros na rua que buzinavam sem parar. Era como se passasse em nossas mente um monte de questões que não queriam ser ditas. Acendi um cigarro coçando os olhos , estavam ardendo, vermelhos de tanto chorar. Eu tamborilava as unhas na mesa de forma ensurdecedora, Durval olhou para minhas mãos percebendo, incomodado com este barulho contínuo. Estávamos tão sensíveis que as minhas unhas falavam mais alto que o barulho dos carros. Já faz muito tempo que se fazia silêncio entre nós. Evitávamos sempre de nos encontrarmos a sós porque fatalmente íamos ficar olhando o celular, cada um no seu, para evitar uma conversa. Eu não via a hora de Celso estacionar o bendito carro e vir se juntar a nós. No bar havia rostos conhecidos. Outras pessoas que também estavam na casa do Pedro. Para sair daquela situação tínhamos que mesmo procurar alívio numa cerveja gelada. O amigo em comum de todos nós acabou de tirar a própria vida e por mais que falássemos ficava algo incomodando, um vazio em cada um. Eu tomei logo uns dois rivotril e três quetiapina antes de ir para a casa de Pedro, tinha que relaxar. Não que a sensação de leveza mudasse algo, mas me previni. Não poderia iniciar um surto naquele momento. A mulher e a filha dele já estavam muito abaladas. Mas eu sentia o olhar das pessoas sobre mim. Era como se eu fosse uma aberração no meio da formalidade deles, pessoas normais , que visitavam a recente viúva.A morte não me incomodava, nem da forma como ele tirou a vida. Não ouvir o som da sua voz, recitando ou cantando, era o que me perturbava mais. Celso se juntou a nós no bar. O silêncio foi quebrado em nós que nos mantêm protegidos por nossos próprios pensamentos. Ficaria melhor assim, mas Celso tinha que cria a polêmica. - O suicídio é um pecado mortal. Tem que ser muito covarde para agir desta forma. Será que ele pensou que era Deus? - disse Celso acendendo um cigarro e dando um gole na cerveja que chegou para ele. - Ou muito corajoso - disse Durval - Já imaginou a sensação de liberdade que é você mesmo decidir a hora que vai morrer? Isto é ser maior que Deus. - Celso fez um sinal para ele se calar, estava possesso. - Não vou me calar não, se estou triste ? Muito ! Pedro era meu amigo do peito mas não posso me indispor das minhas próprias crenças. Eu aceito o suicídio como uma forma de liberdade. Eu estava rindo por dentro sarcasticamente e ainda falei - Desde a adolescência já tentei quatro vezes sem sucesso . Sou uma suicida que não deu certo - disse com um meio sorriso. - estou cansada de internações e remédios parece que sempre tento me enforcar num pé de acerola. Celso estava alterado não querendo admitir que tinha negligenciado na amizade de Pedro. Já não o via há muito tempo. - Eu falei com ele algumas vezes pelo celular. Conversávamos bastante. Mas estudando e trabalhando não tenho tempo para nada. Mal tomo uma cerveja no final de semana . E não estou mais engajado nos eventos. Eu o encontrava sempre nos encontro de Poesia. Antes da pandemia tinha muitos saraus. - Ele me ligou há uns dois dias querendo me ver. Chamou para tomarmos uma. - disse Durval com a voz mais baixa e com o olhar fixo no relógio- Eu desconversei, disse que estou trabalhando até tarde. E é verdade. Mal tenho tempo de estar com a minha filha. Nós nos encontramos na semana passada, ele continuava o mesmo. Cheios de problemas em casa, desempregado. Eu até dei uma grana para ele. Eu nunca ia imaginar que ia fazer .... que ele cometeria... ele só disse que precisava conversar. Eu fiquei calada por um tempo não queria deixar que um dos amigos me acusasse de algo. Até que confessei: - Eu dei uma cartela de rivotril para ele. - Ontem ? - Perguntou Celso curioso já querendo atacar-me de forma verbal - Não. Uma vez. Ele reclamou que não conseguia dormir. Você acha que uma cartela mata alguém?. - Não sei, respondeu Durval - diz você que é mais experiente. - Já tomei três caixas e não morri. Era a hora dele. E você que preza tanto a liberdade deveria ter falado com ele a dois dias. - Está me acusando ? - Não, estou querendo entender . Eu queria entender mais uma coisa. Por que não saímos daquele bar ? Cada um para sua casa. Por que não íamos embora já que estávamos tão violentos uns com os outros. - Eu estava ocupado, não podia sair - defendeu-se - Vamos pedir uma mesa lá dentro ? Aqui está muito barulho e quente. - Lá dentro não posso fumar. - Você vem aqui fora, pode andar não pode? - disse Durval irritado. E ainda falou mais - Daqui a algumas horas tenho um voo para Maceió . Não poderei estar no enterro. Já marquei esta viagem há meses. Preciso relaxar. Entrar em reflexão comigo mesmo. - No meio do caos -,disse Celso sarcástico. Em mim, se tornará um caos estar ali numa discussão que não levaria a nada sobre a morte de Pedro. Ele arrumou uma forma de acabar com seu sofrimento. Eu não conseguia fazer isto. Ele estava em paz, agora . Estávamos tensos demais . Durval olhou mais uma vez no relógio - que horas são? Acho que esta porcaria está quebrada não para de marcar sete horas. - Já são dez horas, Durval, a bateria deve ter acabado. - Celso tinha uma calma como se fosse dono de si. O que não era. Sentia-se tão culpado quanto nós. Mas por que estávamos nos culpando? Apenas nosso amigo tirou a vida de forma brutal. O problema era dele, não nosso. Eu não iria deixar ninguém saber que fui a última pessoa que esteve com ele. Não sou louca , estou medicada, faço terapia e longe do hospital a mais de três anos. Então por que todo este mal estar? - Como ele conseguiu tanto medicamento? Para ficar tão dopado e cortar os pulsos daquele jeito? Ele sabia que estava se matando - disse Celso pensativo. - Diferente de você, não é Miriam? Que cortou parcialmente os pulsos na horizontal , só querendo chamar atenção. - novamente Durval estava me atacando. - Vai lavar esse rosto! A pintura do olho já borrou tudo envolta. Está parecendo uma defunta. -Olha aqui Durval - eu disse - Nós dois ficamos melhor quietos - e sai para o banheiro . Minha cara estava pálida com aquela mancha preta em torno dos olhos. Eu estava vestida de preto e as unhas pintadas de preto, como de costume. Mas a palidez fazia sobressair tudo. Estava horrorosa. Quando voltei, os dois já estavam sentados dentro do bar. Parecia ter passado horas. Mas o ar refrigerado era suave e a falta de barulho externo só fazia mais ouvir-se o silêncio entre nós. Nunca o silêncio falou tão alto entre nós. Parecia que algo precisava ser dito e nos calamos . Até que Celso falou - Ele me ligou a dois dias, queria conversar. - Eu deveria ter ido ao encontro dele também. - Durval ainda examinava o relógio parado. - Eu estive com ele - confessei - acho que fui a última pessoa com quem ele falou. O silêncio das palavras vomitava verdades. - Eu dei alguns remédios para ele relaxar - e enquanto as lágrimas brotavam na minha face tentei disfarçar meus pensamentos - Eu ajudei ele se matar? Vocês acham ? . - Mas você não abriu o canivete, não foi ? -.Claro que não, nem sabia que ele tinha um - disse quase surpresa. Era só o que eu podia anunciar aos meus amigos, nada mais .As questões da morte de Pedro e meu envolvimento nisso estariam para sempre sepultados com ele. E nós ali, presos naquele bar, cheios de culpas. Durval estava tentando remarcar o seu voo. Iriamos todos ao funeral . Já era madrugada. Estávamos machucados e desolados . Saí para fumar, eles ficaram calados. A noite ainda estava quente e já estávamos no meio do outono . FIM
Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 07/04/2025
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