Ana Lago de Luz

E na beleza das flores... e nas ondas do mar!

Textos


 

 Os Cacos que Restam

 

O primeiro prato que quebrou foi o de flores azuis — aquele que ganhei da vovó no dia do casamento. O som foi um tlin agudo, quase musical, como se a louça quisesse cantar antes de virar pó. Depois vieram os outros: o prato branco das lasanhas de domingo, a xícara com a asa rachada que ele insistia em usar, o pires que sobreviveu a todas as brigas até hoje. Agora, eles estão aqui, espalhados no chão da cozinha como estrelas caídas.  

Meus joelhos doem contra o azulejo gelado enquanto recolho os cacos. Tlin, tlin, tlin. Cada fragmento que coloco no jornal embrulhado para o lixo ecoa mais alto que os gritos dele. A porta já rangiu, o carro já arrancou, mas o silêncio que veio depois é pior — um vazio que lateja, como se a casa inteira estivesse segurando o ar nos pulmões.  

Babi está parada na porta, os braços cruzados sobre o pijama rosa desbotado. Tem 12 anos, mas hoje parece ter 90. Aprendemos juntas a calcular o humor dele: o barulho das chaves batendo na mesa, o suspiro antes de falar, o copo que escorregava da mão. Desta vez, não deu tempo.  

— Posso ajudar? — ela pergunta, e a voz dela é um fio, como se também estivesse em pedaços.  

— Não. Vai te cortar.  

Falo sem olhar, porque se virar agora vou ver os olhos dela — os meus olhos, herdados junto com o queixo trêmulo e o hábito de morder a língua quando o medo aperta. O caco que seguro está afiado. Pressiono sem querer e uma gota vermelha desce pelo dedo.  

— Mãe…  

— Tá vendo? — finjo riso, enxugando o sangue no avental. — Por isso que não pode mexer.  

Ela não se move. Sei que está olhando para minha nuca, para o cabelo grisalho que ele dizia ser "desleixo de velha". Quase ouço os pensamentos dela, tão parecidos com os meus aos 12: "Por que a gente não vai embora?". "Por que você deixa?".  "Por que eu não consigo gritar?"  

— Ele vai voltar? — a pergunta vem em um sussurro.  

O caco seguinte escapa da minha mão. Tlin.  

— Não sei.  

Minto. Ele sempre volta. Volta com flores, com promessas, com desculpas que cheiram a uísque. Desta vez, porém, quando quebrou a mesa com o punho fechado, havia algo novo no olhar: um ódio que não era só raiva, era cansaço. De mim. Dela. Dele mesmo.  

Babi se ajoelha ao meu lado, ignorando meu protesto. Segura um pedaço de cerâmica pontiaguda, mas não para o lixo — para a própria mão, como se testando.  

— Para com isso! — grito, puxando seu pulso com força.  

Ela me encara, e é a primeira vez que vejo fogo naqueles olhos:  

— Por que a gente não quebra tudo também?  

A pergunta fica suspensa entre os estilhaços. Quase digo que não podemos, que o aluguel não cobre um jantar novo, que as coisas custam, que o mundo é duro. Mas o que sai é:  

— Porque alguém tem que juntar os pedaços.  

Terminamos em silêncio. Quando a última lasca some no saco preto, sentamos no chão, costas contra a geladeira. Ela encosta a cabeça no meu ombro, e eu percebo que está crescendo — logo, será mais alta que eu. Talvez forte o suficiente para não repetir minhas escolhas. Talvez não.  

Lá fora, um carro passa devagar. Seguro a respiração. Babi também.  

O motor não é o dele.  

Por enquanto, ainda estamos aqui. Entre os cacos recolhidos e os que continuam caindo, invisíveis, dentro da gente.

Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 05/04/2025
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