Ana Lago de Luz

E na beleza das flores... e nas ondas do mar!

Textos


Desafio 4 

 


 

A EUTANASIA

Lucas foi para a sacada do sétimo andar do hospital onde nos encontrávamos.  Era ampla e refrescante, tinha uma visão para a cidade inteira. As luzes ofuscam o negrume do céu sem estrelas. Ele sentou na cadeira e começou a telefonar  para o médico, Dr Fernando, logo já estava de pé falando alto. 

Ele questionava o médico sobre o fato de achar que a avó estava em agonia e repetia  para eu ouvir o que ele dizia. 

- O sr diz que ela não sente dor. Todo o corredor escuta os gemidos dela. Eu quero que aplique mais morfina nela. 

E andava mais ligeiro pela sacada.

- Não é  dor ? Ela não está sentindo nada estando inconsciente  ? É  a bilirrubina  chegando ao cérebro? Não posso acreditar nisso, doutor. 

Havia um silêncio ensurdecedor naquele corredor e a noite fria com estiagem de chuva. O vento sussurrava pelas janelas semicerradas. 

Eu vi que meu amigo chorava ao desligar o celular. E fiquei embargado querendo deixar lágrimas escorrerem pela face. 

Tudo tinha começado a mais de um mês quando sua avó começou a sentir alguns sintomas estranhos como muita coceira pelo corpo e quando ia tomar banho  os azulejos  brancos do  box ficavam com uma cor amarelada saída dos seus poros. 

Nós dois, que estudávamos na universidade federal, agora em greve a mais de três meses, tomamos a frente de tudo pois sua mãe precisava trabalhar. 

Foi detectado um tumor antigo no fígado e sem esperança de cura, precisava ser operado para dar qualidade de vida a ela . Marcaram com urgência a cirurgia e na noite que ela foi internada muitos parentes foram vê-la achando de se tratar da última vez. 

Sozinha no quarto somente com nós dois suas palavras eram mansas.

- Um dia a gente tem que ir , não é  mesmo? 

Lucas não queria acreditar na sentença de morte e desconversava o assunto.

- Fala daquele pessoal da vila que a senhora foi criada.  Eu não conheço direito a história. 

Mentira. Já sabíamos de cor. 

-Dos irmãos? 

- Sim. Aqueles com nomes engraçados. 

-Ah os filhos da Judith. Eram conhecidos por Nana, Nene, Nini, Nono e Nunu. Mas o nome daquelas crianças eram Osonar, Osoner, Osonir, Osonor e Osonur.

Agora sim, ela tinha um sorriso nos lábios

- E eu conheço uma piada do Ariano Suassuna parecida. A senhora conhece? 

- Não. Qual é ? 

E mais uma vez Lucas contava a mesma história. - ele dizia que foi a um pastoril e ao final ele apresentou as pastoras. Pata, Peta, Pita, Pota e Creuza . Ela desatava a rir e eu também.

Lucas tinha um amor incondicional pela avó e não aceitava a morte como resposta. Os dias que passávamos na extensa varanda da casa dela, deitados nas redes e ouvindo suas histórias não poderiam se acabar assim.

Quando acabou a cirurgia, ela na UTI,  ainda falando normalmente, Lucas perguntou se estava bem e se queria algo

- Não gosto dessa roupa de hospital. Traz aquela minha camisola vermelha com rendas. - Seus olhos verdes estavam bem abertos e não parecia sentir dor. Mas não existia a tal camisola, nunca houve. Ela já delirava.  Logo depois ficou inconsciente. 

Lucas saiu da sacada desolado, não acreditando no médico e parecia muito nervoso . Voltamos para o quarto da avó que inconsciente soltava gemidos mais altos 

- Lucas, você está bem ? 

 - Não. Será que ela vai acordar ? 

- Os médicos não têm certeza . Talvez sim. 

- Eu só queria que tudo acabasse.

Lucas estava pensativo demais. Tinha pouca idade para um dilema tão forte. Eu o acompanhava em tudo. Estava quieto demais para o seu temperamento tempestivo.  Tinha suas crenças, foi criado num lar católico. Seus pensamentos o perturbaram. 

Estamos no hospital há dias e ela não apresenta melhora. Estava inconsciente e cada vez mais alto, seus gemidos ecoavam pelo corredor. Lucas estava sem o apoio da família que se apresentava sempre  muito ocupada. E precisava tomar uma decisão. Pois a cada momento a vontade de desligar os aparelhos aumentava.Isto era o que me parecia passar na cabeça dele .

 Depois que vi Lucas berrando ao telefone com o médico era claro que tinha duas opções. Manter a agonia que aparentava sofrer sua avó ou desligar os aparelhos e terminar com tudo de uma vez. 

Ele estava falando pouco mas demonstrava estar numa luta interna do que deveria fazer.

Eu vi ele tremendo muito as pernas quando estava sentado. Batia uma sobre a outra o tempo todo. E levantava logo em seguida andando pelo quarto. Que na penumbra tinha um ar mortífero.  Para Lucas os gemidos da avó denotavam dor e sofrimento mesmo que o médico afirmasse que ela não estava sentindo nada. Era apenas um delírio surgido do efeito da bilirrubina no cérebro dela. Mas eu sabia, que na mente de Lucas ela estava em angústia. E a única saída era desligar aqueles aparelhos que a mantém viva. 

Pronto, ele já estava decidido, naquela hora era troca de plantão e nenhum enfermeiro entraria no quarto. Ele iria desligar os aparelhos até que ela ficasse sem vida e depois retornaria a ligá-los. Eu compactuava com aquilo. Mesmo um pouco temeroso de alguém descobrir o que ele ia fazer, eu estava como testemunha com tudo aquilo. 

Lucas passou os dias observando como os enfermeiros lidam com os aparelhos e tinha certeza do que faria.Eu não o questionava mesmo vendo em seus olhos que o arrependimento já tomava conta do seu ser. Não queria ver a avó morta, mas não tolerava mais o que achava tanto sofrimento. 

A última entrada de enfermeira conciliou com minha saída para tomar um café e na volta para o quarto escutei ela falando assim

- Ela precisa descansar, está lutando muito. 

Olhei para o rosto de Lucas transtornado. Eu quis dizer algo, nada saiu da minha  boca, sabia o que ele iria fazer. 

Ficou ali parado, do lado da cama observando o aparelho que apitava. Seu olhar encontrou o meu pedindo consentimento. Eu não pude dar. Era entre ele e ele mesmo. 

Ainda vi sua mão deslizar pelo fio que ligava o aparelho. Lágrimas corriam pelo seu rosto. Hesitou por um longo tempo da fração de um minuto, tamanha era sua própria dor. 

Foi quando na penumbra do quarto, o barulho da chuva e do vento pela janela pudemos ouvir.

- Lucas, Lucas meu neto! 

A avó acordou,   com uma voz muito baixa, rouca, quase não podia ouvir. 

Aproximei - me  da cama, seus olhos arregalados manchados de um amarelo doentio piscou algumas vezes. Lucas só olhou para a avó quando enxugou as lágrimas e sorriu.

- Lucas, você trouxe minha camisola vermelha de renda ? 

Só percebi  nossas mãos se encontrarem e eu apertei o mais forte que pude a dele. 



 

Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 04/10/2024
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