Um cheiro de flor
Molhando as flores do lado direito do jardim e sentindo o cheiro que delas emanava tive o ímpeto de arrancar uma rosa e comê-la. Estrassalhar ela nos dentes. Cheguei a tocá-la e sentir a maciez das pétalas, tão frágeis. Eu me contive. Passei para o lado esquerdo onde tinha as azaleias e o manacá e era mais insuportável ainda. Meu patrão saiu pela porta me cumprimentando e já me dando ordem. - Precisa podar os carramanchões. - Sim chefe! - E as azaleias e o manacá não podia estar mais arredondados? - Sim senhor Eu tinha um sorriso no rosto mas fervia por dentro. Eu odeio flores, principalmente as rosas, e sou jardineiro a mais de dez anos na casa dos Vieira Carvalho. Deixei as flores do imenso jardim de lado para ir varrer o quintal. Onde várias árvores frutíferas enchiam o chão de folhas. O outono me tirava do sério. Fazia pequenos montes de folhas para recolher no final, caso o vento não as espalhassem, como de costume. Eu pisava nas folhas já mortas, amassando com o pé. A morte e a morte das folhas caídas de outono. Ainda não havia frutos nesta estação então nem roubar alguns eu poderia. Era apenas o trabalho de varrer todos os dias o destino da renovação. Eu vi minha patroa entrar pela porta dos fundos com três rosas colhidas do jardim. Ela fazia sempre isto. Colocava numa jarra comprida na mesa da sala de estar. Ah, como eu odiava aquela mulher, mais que o patrão. Eu pedi , certa vez para levar flores ao túmulo de minha mãe e ela negou. Não demonstrei insatisfação. Roubei duas mudas de crisântemos e plantei em dois vasos de cimento que construí no túmulo. As flores estavam lindas. Eu sempre ia ao túmulo de minha mãe cuidar de outras flores que eu sempre roubava do jardim deles. A manhã já estava terminando e eu pretendia podar as azaleias e o manacá antes do almoço. Quando meu patrão recebeu a visita do Ernesto, aquele paisagista irritante que sempre queria mudar algo de lugar. Estavam animados e sorridentes, vieram na minha direção. Eu não entendia para que um jardim tão florido, tantas árvores se eles nem sentar nos bancos a baixo dos carramanchões sentavam. Não caminhavam pelo jardim ou colhiam mangas e goiabas em dezembro. Tudo apodrecida pelo chão, as que eu não roubava , é claro. Eu tinha construído caminhos de pedras para caminharem ladeados de belas margaridas. Mas não, aquela mulher estava sempre dentro de casa. E o patrão trabalhava muito e às vezes viajava a negócios. - Nilson o Ernesto tem um projeto novo e quero que entenda bem. Amanhã dois homens irão vir te ajudar . Nada me deixava mais possesso do que ter que trabalhar com alguém. - Sim patrão. - Vamos escavar um buraco bem fundo pois em dois dias chegará o meu pinheiro de Natal. Já comprei ele enorme para fazer uma Árvore de Natal de dar inveja a todos do condomínio. Ernesto vai te passar as dimensões exatas do buraco. Tudo certo para amanhã? - Sim senhor ! Ele era muito arrogante e esnobe. Por duas vezes nestes dez anos pedi dinheiro a ele, que me negou. Não me ajudou a enterrar minha mãe, nem tão pouco ajudou com as despesas médicas. Não tinha nenhum senso de caridade ou piedade. Eu ? Eu tinha uma mão boa com plantas mesmo odiando elas. Mas mamãe gostava de flores por isto eu fazia o sacrifício de trabalhar como jardineiro e levar sempre flores pra ela. Fiquei até mais tarde para adiantar tudo para o dia seguinte e quando me despedi do patrão, já a noitinha, sentado na varanda, fumando seu cachimbo , ele não respondeu. Eu era invisível aos olhos daquele homem. Minha raiva só aumentava. O dia seguinte foi árduo, mesmo no outono fazia calor e cavamos o buraco como fora mandado, destruindo uma boa parte da grama perfeita. Terminado o trabalho, pensando que ia para casa descansar ouvi aquela mulher insuportável mandar eu molhar as samanbaias da varanda pois não tinha feito no dia anterior. Ela me vigiava, aquela safada! Um pouco cansado mas funcionando na força do ódio molhei as plantas e ainda tive que limpar o chão da varanda molhado. Já estava tarde, o dia seguinte era o trabalho de plantar o pinheiro. Mas não fui ara casa. Minha mente queria algum doce sabor de vingança e eu não medi esforços para colocar meu plano em ação. Voltei ao buraco da árvore , entrei nele com a pá e cavei mais fundo. Depois esperei a noite chegar. Pensei no empréstimo que devia a um agiota para o enterro de minha mãe. Não sei quando poderia paga-lo. Eu deveria ganhar um extra pelo plantio desta árvore. Esperei o patrão sair para a varanda com seu cachimbo com cheiro de maçã e sentar-se no conforto na cadeira acolchoada. Tinha pouca iluminação e vinha música de dentro da casa, a mulher deveria estar escutando canções antigas da juventude. Passei por trás dele, sem que me visse, com a pá na mão. E num único golpe na cabeça o derrubei no chão. Ficou ali caído, não sei se estava morto, não havia sangue. Peguei o cachimbo e enfiei no bolso e e arrastei o corpo para o buraco. Ainda estava desacordado quando joguei-o no fundo onde cavei mais e comecei a cobrir de terra. Não verifiquei se estava vivo. Deixei tudo pronto na altura para plantar o pinheiro. Respirei fundo e o cheiro do manacá me deixou com náuseas. Resolvi deitar num banco do jardim e adormecer. Sonhei que tinha um pequeno pinheiro plantado junto a cova de minha mãe, enfeitado para o Natal. No outro dia Ernesto chegou num caminhão trazendo a árvore e mais homens para trabalhar. Eu já tinha despertado e tomado meu café junto com outros empregados da casa. A mulher apareceu no jardim. - Onde está Seu Vieira para ver esta beleza - disse Ernesto. - Viajou a negócios- mentiu ela como sempre fazia quando ele dormia fora de casa. - Mas dê continuidade ao plantio. Ele vai ficar muito feliz quando chegar. Olhou para mim, inquisidora, por eu estar olhando a cena , como se soubesse que eu sabia que estava mentindo. Foi para dentro de casa e não voltou mais. Antes de começar ajudar no plantio, arranquei uma rosa já bem desabrochanda e enfiei todas as pétalas na boca, devorando em êxtase.
Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 04/07/2024
Alterado em 04/07/2024 Copyright © 2024. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |