Desafio 2
Será uma boa noite para morrer? Só morrendo terei as respostas que deixei plantado no coração daquelas pessoas que estava ali, em busca de alento em seus corações. Mas esta é uma contradição. Se eu creio em Deus devo saber que só ele é detentor da vida e da morte, como posso pensar nisto. A paz não está comigo. Eu estou aqui esperando terminar o cigarro. Acho que me excedi no vinho. Em frente ao Hotel Central de Petrópolis onde deixei fluir meus versos , numa noite de delírios. Estou demorando a entrar nesta noite fria, sei que tem um quarto quente me esperando desde o início da tarde, mas preferi caminhar pela cidade e me embriagar um pouco. Aqui ninguém me conhece e há uma sensação de alegria pujante. Não ter que compensar ninguém nem demonstrar sempre um ar de calmaria e solidariedade. Mas por que fui escolher a serra, as montanhas que oprimem? Eu deveria ter ido para o litoral, num delicioso contato com o mar. Como eu sinto saudades do mar. Da areia morna, a água gelada quando as ondas vem beijar. Beijar a praia, beijar meu corpo que se deixa boiar nas águas. Eu deveria ter ido para o mar. Porém lá eu iria me sentir muito bem. Bem ? Não, é este todo o meu problema. Discursar entre o bem e o mal. Fui um tolo . Para que me expor tanto? Para que criar naquelas pessoas tal questionamento? Acho que fui perverso. Quis descontar de alguma forma o que de pior há em mim naquelas pessoas que só esperam um pouco de alento. Mas meu Deus, eu sou um padre! Não poderia fazer aquilo logo no meu primeiro sermão. Tanto tempo de estudos, fiz os votos , me preparei. Organizei minha mente. Para fazer o que fiz? Agora só quero me esconder, viver uma culpa que não sei se tenho , eu quero morrer. Até agora não sei o que deu na minha cabeça para escrever aquele sermão. O que me direcionou ao meu próprio erro. E será que foi um erro? Questionar é um erro? Aceitar dogmas, normas com total exatidão é o certo a seguir? Por livre e espontânea vontade larguei o mudando para me tornar um padre. Eram anos da adolescência onde eu pensava em ser um poeta e um vagabundo das letras. E foi no primeiro cigarro de maconha que percebi que algo do meu eu extrapola, não em risos e bagunças, mas fiquei ali quieto, dominado por algo fora de mim, num mundo sem dor, aliviado. Por que estou pensando nisso agora ? Só falta eu dizer num sermão que um cigarro de maconha me levou a ser um padre. Lembro agora da frase de Padre Pio onde ele dizia que é preciso se calar, estar em silêncio para ouvir Deus. Acho que este é o meu mal . Vou arrumar meus pensamentos, destravar o que está incomodando tanto. Porque larguei a vida do mundo para me embrenhar nos estudos e fazer meus votos. Eu decidi por uma vida eclesiástica. E estava tudo bem e calmo. Eu me sentia feliz. Fiquei muito animado quando realizei o desejado e em saber que cuidaria de uma congregação me fez mais forte. Eu estava em comunhão com Deus. Padre Afonso era meu mentor e sua sensibilidade e astúcia em interpretar a vida com serenidade me faziam querer ser uma pessoa melhor. Até o dia que fui escrever meu próprio sermão . Eu iria falar apenas da passagem de Abraão e sua confiança plena em Deus ao ponto de oferecer seu próprio filho ao sacrifício. Uma fé cega o movia. Eu fui mais além e comecei a questionar sobre o céu e o inferno. Deixei claro que não poderia haver um inferno se o mal já prevalecesse na terra. Eu disse que não éramos merecedores do céu já que não nos comportamos como Abraão. O que me levou a isto, não consigo explicar. Agora neste quarto , na penumbra da noite só penso em morrer e estou tão mal que não consigo imaginar que o suicídio é um pecado mortal. Seria bem mais fácil ter sido um poeta e viver pelos bares da vida. Mas eu me transformei, não foi cigarro de maconha não, e sim algo que despertou em meu coração que me trouxe próximo a pureza da alma, a desejar um coração limpo de ansiedades. E hoje cá estou prestes a terminar com minha vida. E ainda magoei minha família Meu pai estava muito aborrecido. Ele nunca foi de bater ou brigar comigo. Sempre sentava e conversava. Somente uma traquinagem que fiz quando menino ele me colocou num canto da sala de jantar sentado numa cadeira para pensar. Eu tinha jogado as goiabas caídas no chão, já podres para a casa do vizinho. Porém seu aborrecimento naquela tarde chegava a ser ofensivo . Ele falava sem parar. - Você sabe que me tornei um diácono por tua causa ? - disse ele acusativo - eu sempre fui muito catolico, temente a Deus, e isto me bastava. Mas não, você, meu único filho, de onde eu esperava netos, preferiu seguir uma conduta religiosa, deixando os sonhos, meus e de sua mãe, para trás. Nós relevamos, orgulhosos de você. - Mas pai, eu continuo a ser a mesma pessoa. Eu sinto não ter te dado netos mas nunca abandonei vocês , nunca deixei de dar amor e carinho. - A questão aqui não é amor, carinho ou ausência. Mas o que você fez é irreparável. Você questionou Deus , ora rapaz, o que passou pela tua cabeça ? - Eu não estou questionando Deus, vocês levaram tudo pelo lado errado. A minha missão não é abrir a mente das pessoas? - Não ! Não deixando elas confusas, como você deixou. Você deveria levar alento, é isto que elas procuram . Através das suas palavras, da oração, elas se conectam com Deus e fazem uma espécie de catarse, entende ? E vão embora dali com a alma repleta. Elas querem preencher seus corações amargurados. Eu sabia de tudo isto mas eu acho que fui mal interpretado de certa forma. Será que em nenhum momento Abraão questionou a vontade de Deus ? Será que ele não pensou que fosse o Demônio, e não Deus, que o conduzia a sacrificar o próprio filho? Eu fui um tolo em trazer tais questões para o mundo. E magoei as pessoas mais importantes da minha vida. E transtornado ainda tive a serenidade de Padre Afonso , não para me consolar mas para fazer eu compreender o que fiz. Padre Afonso representava a Igreja para mim. Ele esteve comigo em todas as etapas do meu crescimento espiritual. E eu sabia que a atitude dele seria serena pois isto já era interioridade para ele. Não havia nenhuma perturbação em sua mente. Não havia atritos em seu coração. Por isso ele chegou de uma forma mansa e acolhedora em mim. - Vamos, sente aqui, meu bom rapaz - era para estar furioso comigo, as suas expectativas foram por água abaixo com o meu discurso mas mesmo assim se mantinha com um semblante lívido, dentro da sua batina que cheirava a lavanda, com o corpo um pouco inclinado pelos anos passados e na cabeça os pouco cabelos branco que lhe restavam. Sentei ali, no banco da igreja silenciosa onde só o barulho dos pássaros entrando e saindo pelas janelas retiravam um pouco o ar de santidade do local. - Perdoa-me padre. - Você tem que pedir perdão a Deus. Mas antes refletir sobre o seu ato. Você tem que estar certo do que vai na sua alma e no seu coração. - O senhor está querendo me dizer que não estou certo de minha vocação? - Não é isto que estou querendo dizer ? Você que está dizendo. Está em conflito, meu filho? - Não, padre. Em nenhum momento pensei estar em atrito com minha vocação. - Mas está em paz? - Isto eu não sei, padre .O próprio Papa Francisco não é um questionador? Ele, em alguns momentos, não é julgado pelo mundo ? - Porém sua Santidade sabe muito bem conduzir o que fala e argumenta com fervor quando é julgado pelos homens. - Não estou me comparando ao Papa, longe disso. Eu só quis plantar uma semente. - Mas a deixou fora da terra que nem estava adubada. Levou angústia ao coração daquelas pessoas. - O senhor pode me perdoar ? - Isto é entre você e Deus. Reflita sobre isto. Depois da conversa com padre Afonso resolvi fugir. Entrar em contato com o jovem que fui no passado . Eu estou me desconectando com Deus porque ele não fala comigo.Ou eu não consigo ouvi-lo. Aqui neste quarto, último refúgio do meu eu maldito , penso nas palavras de padre Pio. Ele tão próximo da santificação e eu tão mundano e vil. Já não me sinto tão ébrio e minha mente cansada parece se calar. A noite já se finda, logo vai amanhecer e terei a oportunidade de ver mais uma vez o espetáculo da terra criada por Deus ? O silêncio é total. Minha hora derradeira, fecho os olhos. Procuro na mochila o meu terço, afirmo no meu íntimo que Abraão foi fiel a Deus. Mas é eu ? Estaria sendo fiel? Sinto um aroma de rosas confundido ao cheiro do cigarro e da bebida, serão meus últimos minutos ? Afinal de contas, amanhece de qualquer jeito. FIM
Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 09/05/2024
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