Ana Lago de Luz

E na beleza das flores... e nas ondas do mar!

Textos


Módulo 7 - Oficina de contos 

 

 

Everaldo,  o palhaço 

 

Já fazia muito tempo que não ia de volta para casa, rever sua mãe. 

Vivia itinerante com um circo muito pobre e decadente pelo interior do país.  

Everaldo, o palhaço Vlap Pum era a alegria da garotada. Atuava sozinho, longe dos outros palhaços e sempre mudo,  fazia piruetas e palhaçadas que deixava até os adultos sem ar. 

Mas Everaldo, sem a maquiagem era um homem tímido, já chegando a casa dos 50 anos. Muito baixo e magro com sobrancelhas grossas e uma barba sempre por fazer. Seu olhar era vago e andava com a cabeça sempre curvada para baixo. 

Tinha esta personalidade taciturna  pelo fato de ter perdido a esposa e filha num acidente de carro. Pensou em desistir da carreira já que atuava com as duas, mas não sabia fazer nada além de ser palhaço.  Seguiu com a trupe. 

Era amável com as pessoas e colegas do circo porém sempre reservado. Estava sempre pronto a ajudar e era o primeiro a chegar para montar a lona,  mas era de pouca conversa. No refeitório fazia suas refeições separado dos outros para se aprofundar em suas orações. 

Em casa, sua mãe muito religiosa, ensinara-o a agradecer a Deus por tudo que fazia. Esperava vê-la de novo, sentia saudades dela. 

E a noite, sentava na frente do espelho iluminada para compor sua maquiagem. A princípio não reconhecia aquele homem refletido, a cara triste e saudosa, mas com a pintura se transformava em um ser feliz e brincalhão. Agradecia a Deus pela transformação,  meditava um pouco. E livre e leve entrava no picadeiro para levar alegria a corações amargurados e a crianças inocentes. 

Tinha uma particularidade, após sua apresentação,  ficava atrás do palco, no escuro, para ver a entrada da bailarina. Uma jovem franzina mas muito sorridente e amável com todos, sempre no seu robe com estampas japonesa e um batom vermelho nos lábios. No palco era apenas uma bailarina pálida  encima de uma caixa rodopiando lentamente, parecia levitar nos seus passos de balé.

Para Everaldo aquilo era a verdadeira magia e na maquiagem de palhaço um olhar brilhante, porém triste e atento, surgia do nada.  

Everaldo  nunca falou com Cecília, a bailarina, mas a observava de longe,  o quanto era cortejada por todos os homens do circo e dos fãs  que faziam fila para tirar uma foto com ela. 

E mais uma vez, diante do espelho, sua imagem ia se transmutando num emaranhado de ossos e peles. Sua figura de palhaço se tornava um Everaldo melancólico.  Se sua consciência estava limpa, seus gestos amáveis,  sua conduta exemplar eram apenas  miragens diante do espelho. 

E teve um  dia que Everaldo saiu para tomar café bem cedo, antes dos outros e pode ouvir vindo do picadeiro uma música frenética, porém baixa; curioso entrou de mansinho e viu Cecilia no palco, ela bailava livre por todo o palco numa dança vertiginosa, parecia uma égua selvagem correndo pela praia. A dança hipnotizou Everaldo que  com um meio sorriso no rosto assistiu todo o espetáculo de liberdade da bailarina da caixinha de música.Pensou até que amava aquela mulher. 

Ele tinha falado com sua mãe  ao telefone e ela lhe pareceu muito bem. Falaram  da família e dos animais. Tão distante da casa materna e tão perto das suas origens. Um pulsar frenético no peito o abateu . Voltar para casa , um dia, com Cecília ao seu lado seria um sonho .

O dia transcorreu normal, era domingo e o espetáculo seria a tarde. Havia muito trabalho no circo mas não havia mais obrigação com animais. Todos foram recolhidos. Para a desgraça do domador de leões,  do homem que fazia piruetas em cima de cavalos e do adestrador de elefantes. Até o dono do circo foi afetado no seu número com vários cachorros. O circo tinha outro cheiro. Não melhor, mas o cheiro da decadência. 

E logo depois do almoço o palhaço Vlapt Pum tomava sua forma original, seu esmerado condutor de alegria. A imagem nítida no espelho. E na ânsia,  mais que os aplausos, poder ver, do escuro,  a doce bailarina rodopiar. Ainda era dia quando a observou, em seu número cândido  pela última vez. Até aquele momento ele não tinha percebido  que um presságio  configurava em seu coração. Antes que as palmas ensurdecedora calassem as últimas notas musicais no seu íntimo havia uma pontada de dor. 

Não viu mais a bailarina naquele dia.  A imagem de sua dança livre não saia de sua cabeça,  vestida numa saia esvoaçante e numa blusa colada ao corpo. Se ela percebeu sua presença, nunca saberia, mas ele presenciara  seu momento de liberdade. 

Naquela noite caiu uma tempestade, Everaldo mantinha-se sentado na poltrona esfarrapada fumando um cigarro e tomando uma cerveja, só pensamentos de cavalos selvagens povoaram sua mente. Pensou ter ouvido um grito de mulher e não se importou, sabia que os amigos se embebedavam e riam em algum lugar perto dali. A chuva era torrencial. 

Em algum momento pensou em Cecília como mulher dentro do seu robe com estampas japonesas e aquele sentimento de presságio, uma intuição ajustada tomou conta do seu coração. Ainda vestido de palhaço, maquiado,  teve um impulso de sair do trailer. Um ardor secava sua garganta e em passos largos correu ao picadeiro. 

Para encontrar o corpo nu da mulher jogada ao chão.  A chuva forte borrava a pintura do rosto dela, os cabelos em desalinho, um pé ainda calçado com uma sandália de salto. Aproximou-se um pouco para ter certeza : era Cecília. Um cordão roxeado em volta do pescoço e a tez pálida, límpida. Sem vida. Ainda procurou em volta algo para cobrir o corpo mas só pode ajoelhar-se e deixar as lágrimas confundir-se com a chuva. Sua maquiagem derretia, se desfazendo num branco que se tornava  avermelhado como sangue. 

Aos poucos foram chegando os outros. Ouviram um grito, ouviram vozes e barulho do motor de  motos. Everaldo não escutou nada. Só o alerta do coração.  

Logo encheu de gente, a polícia foi acionada e sob o plástico negro estava o que restou de sentimentos de alegria de Everaldo.

O circo não funcionou na semana seguinte, a polícia logo descobriu os donos das motos que entraram naquela noite no circo. Eram três jovens drogados que assistiram ao espetáculo naquela tarde e fizeram fotos com a bailarina. Voltando a noite para chama-la para beber. Na recusa, bateram nela, estupraram seu corpo e a enforcara.  Deixando seu corpo nu jogado na lama na chuva torrencial. 

Everaldo não conseguia mais compor o personagem de palhaço. A maquiagem ficou para sempre escorrida sobre o corpo da bailarina.  Resolveu partir e deixar tudo para trás.  Voltar a casa materna para não ter que recomeçar  mais uma vez. 

Ele levava consigo, na sua pequena bagagem uma pequena caixa que comprou na rodoviária. 

E seus dias passaram a ser os mesmos, naquela terra esquecida pelo tempo, a seca que assolava.  Na companhia do último refúgio,   sua mãe.  Eram duas testemunhas de uma vida sem risadas.

Não tinha espelhos para não olhar a imagem retorcida e embaçada do seu rosto. Deixou a barba crescer.Ficou sabendo que o circo foi a falência. Não se importou.

E toda noite, no escuro, abria a pequena e adornada caixinha de música para assistir ao espetáculo da minúscula bailarina de plástico rodopiar sobre um chão aveludado,  até adormecer . 

 

 

Fim 

Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 27/04/2024
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