Clube dos Contos - caracterizar um personagem que não fala e se expressa pela linguagem não verbal e sua empatia.
As borboletas são mudas Minha filha nasceu perfeita e normal. Até os 4 anos teve todo o desenvolvimento inerente a uma criança. Era esperta e comunicativa. Até que um fato mudaria tudo. Meu marido levou um tombo da escada que levava ao segundo andar da nossa casa e quebrou o pescoço, morrendo instantaneamente. Ele estava sozinho com Mirela, em casa, e passou horas com aquela garotinha sobre o seu corpo inerte. Não sei o que se passou até eu e meus pais chegarem em casa. No desespero só tinha meu olhar e minha mente sobre a tragédia ocorrida. Para só depois perceber que Mirela não emitia nenhum som. Ela estava em choque, alguns falaram . Só as lágrimas escorriam silenciosas. Os dias de luto foram passando e da minha dor foi gerando um desespero pelo fato da menina não emitir nenhuma palavra. Ela escutava normalmente, respondia sim ou não com a cabeça mas não dizia nada. Foram várias visitas a médicos, psicólogos e especialistas, mas ela continuava muda. Meus pais enchem ela de carinho e afeto, mas ela simplesmente não falava nada. A morte levou consigo também a voz da minha filha. Fora isto, Mirella levava uma vida normal, brincava, andava de bicicleta em torno da casa, assistia TV e se alimentava muito bem. A única coisa que mudou é que estava sempre desenhando borboletas pelas paredes da casa. Fazia muitos desenho, percebemos que tinha um dom para desenho mas em todos tinham borboletas coloridas. Meu pai a incentivava com lápis e canetas coloridas. Resolvemos mudar de casa quando ela desenhou o pai caído da escada e enormes mãos, que do topo pareciam que tinham empurrado ele. Se questionassem o desenho ela fazia o mesmo gesto. Colocava o dedo indicador sobre os lábios pedindo silêncio. A menina faladeira e que gostava de cantar era apenas um enigma para nós. Meu pai não desistiu dela nem por um momento e conforme crescia ele estimulava os desenhos e teve uma ideia de dar a ela uma flauta. O desempenho foi tão grande que sozinha tocava com fluência o instrumento musical . Papai arrumou um professor de música para ela. Mirella, que mesmo sem falar ia bem nos estudos, agora tinha um novo projeto de vida, a música. Antes de completar 10 anos demonstrou ao avô que queria tocar violino e logo já manejava com destreza o instrumento Nossa vida era assim , alegrada pelas canções que ela tocava. E ela dançava tocando o instrumento e sorria. Porém sempre sozinha, no mundo de ausência de palavras. Estávamos bem de vida, Jorge, o sócio do meu marido numa empresa que mantinha nossas vidas bem abastadas e não tínhamos com que se preocupar. Mas sempre que ele chegava em minha casa, Mirella ficava num canto, entoando em seu violino, de forma discreta, alguns trechos do Requiem de Mozart. Isto me intrigava bastante e eu mandava ela parar. Obediente, ela passava para As Estações de Vivaldi como se não tivesse acontecido nada. Participou do seu primeiro concerto e foi ovacionada de pé. Convidada assim para a orquestra mirim de nossa cidade. Era muito disciplinada e astuta no que fazia. A tarde caia e ela chegava para o avô tocando Alegria do Circo de Soleil para deixá-lo feliz. Mamãe cultivava muitas flores no jardim o que trazia mais visitas de borboletas para o entusiasmo de Mirela que adorava o pequeno inseto. Até que um dia percebeu dois casulos nos galhos de uma planta e passou a observar de forma constante. Quando finalmente as duas borboletas sofreram a metamorfose ficou deslumbrada. Passou a desenhar e pintar lagartas, casulos e borboletas com muita curiosidade. As lagartas tinham sempre um balãozinho com algumas palavras sobre a natureza. A lagarta era uma poeta. Papai incentivava a menina a escrever poemas curtos, haicais na verdade, e os dois viviam trocando bilhetinhos entre si.As vezes eu encontrava pela casa estes bilhetinhos . Papai escreveu : grilo no jardim - camuflado na grama ruidoso som E Mirela respondia : na grama cortada do jardim lá de casa - grilo faz cri cri Agora os pequenos poemas eram as falas das lagartas. Eu pegava as vezes meu pai triste pois gostaria de conhecer o infinito que habitava na minha filha. Ela era tão complexa dentro do mundo do silêncio. E nós, meros mortais, não conseguimos entender tudo que ela expressava. Eu guardava todos os desenhos com a finalidade de um dia transformá-los num livro. Tão grandioso como a vida daquela, agora já uma mocinha, silenciosa criatura. Uma borboleta muda. Como toda borboleta não emitia sons, mas por que as lagartas falavam em suas histórias? Nesta época meu pai adoeceu, contraiu um câncer que o consumia. Não demonstrava sofrimento ou dor pois aguardava sempre Mirela com sua música. Com seus lápis coloridos a desenhar lagartas e borboletas. Eu e mamãe estávamos preocupadas demais mas tínhamos que seguir e acompanhar Mirela nos seus compromissos com a orquestra. Quando o avô não podia ir a uma apresentação, ela chegava em casa e reproduzia tudo para ele antes de dormir. Numa noite, adormecida ao lado do papai, encontrei dois bilhetinhos em suas mãos. As letras trêmulas de papai escreveram : lua cheia - absorvida pela concha se fez pérola E a letra escrita em cor de rosa, Mirela escreveu : lua cheia - pronta pra ser devorada delícia de queijo Eu invejava a forma como se comunicavam. Mamãe continuava, no seu jeito simples de ser, a cuidar do jardim. Quando encontrava uma borboleta morta guardava no bolso do avental para entregar a Mirela. Ela as mantém dentro do caderno de pintar. E sempre que surgia novo casulo chamava a mocinha para observar. Era a forma delas se comunicarem. Meus pais não se incomodavam ou questionavam a situação de Mirela. Eu sim, tinha tantas dúvidas e queria respostas. Estava sempre arrumando um especialista diferente para curar minha filha. Nunca tive êxito. Numa manhã de domingo, meu pai estava em casa, deitado, muito debilitado, voltara do hospital para terminar seus dias em casa. Mamãe podava algumas plantas e Mirella desenhava borboletas com giz de cera aos pés da cama do avô. Ainda não pegara no instrumento musical, então tudo era silêncio na casa. Percebi que todos nós nos tornamos mudos diante da situação. Ainda pensei em ligar para a minha irmã, mas preferia ficar calada. A mamãe demorou a fazer o almoço e o serviu a mesa em silêncio. Papai adormeceu. Jorge veio para o almoço, e naquele dia , Mirella não tocou sua música fúnebre, ignorava a presença dele. Ninguém falou durante o almoço. Como se a mudez se transformasse num vírus a que todos fomos contaminados. Não conversamos a tarde inteira. Jorge não falou de trabalho, mudo com seus segredos; mamãe não voltou ao jardim, muda com suas linhas de tricô; eu estava muda com meus conflitos, muda de tantos barulhos ensurdecedores e Mirella não tocava seus instrumentos. Eu ainda cheguei a ver seu último desenho onde no balãozinho acima da lagarta estava escrito: nas frágeis asas um peregrino céu azul - voa a borboleta Minutos antes de ouvir meu pai suspirar e dizer: - Fala comigo! - seu último suspiro de dor e morreu logo em seguida. Por um instante percebi que Mirella abriu a boca numa tentativa de emitir um som mas se jogou por cima do corpo do avô chorando. Eu pude falar : - Pai ! Minha mãe gritou: - Ah não, meu amor ! Mirela só desgrudou do avô para pegar o violino e entoar uma canção que a muito não ouvia mas sabia de cor e na minha dor , entre lágrimas, cantei baixinho: - Oh tristeza me desculpe, estou de malas prontas, hoje a poesia venho ao meu encontro, já raiou o dia , vamos viajar…
FIM
Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 03/04/2024
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