Ana Lago de Luz

E na beleza das flores... e nas ondas do mar!

Textos


Módulo 2 da oficina de contos - trabalhar a historicidade  do personagem. Fatos no passado que influencia no presente

 

Módulo 2 

 

Porre Seco 

Lidiane  estava sentada numa mesa de bar junto com amigos que bebiam alegremente. Ela na coca cola. O papo fluía sobre literatura e filosofia e logo começaram as discussões.  Era sempre assim. Sentar no bar em frente a faculdade, começar  os papos intelectuais e acabar em brigas e discussões.  Já estava acostumada. Não que gostasse mas seguia sempre a rotina para ser aceita pelos amigos. Mas era engano seu pois o fato de não beber já causava certo estranhamento entre o grupo.

Ela já estava entrando na casa dos trinta e nunca experimentara uma bebida alcoólica. Sempre pelo motivo que achava óbvio, não gostava. 

Era chegada a outros vícios, fumava muito e dependia de remédios psiquiátricos desde a adolescência. 

Naquela noite já estava inquieta pelo rumo que a conversa estava tomando e a noite só começou. Sem que ninguém visse, tirou um comprimido de rivotril da bolsa e engoliu com coca cola. Quando finalmente chegasse em casa, tomaria outro para dormir junto a duas quetiapinas. Não estava tensa pois no fundo amava seus amigos e , até certo ponto, a conversa lhe agradava. Sentia certo desconforto em ficar tantas horas sentada, ir a um banheiro que não era tão limpo e a noite estava quente. Então as garrafas de cerveja se multiplicavam. 

Pediram algo para comer , Lidiane estava com fome , e não entendia direito porque Paulo e Renato, quase não tocavam a porção de fritas ou do frango a passarinho. Eles estavam muito bêbados e muito dispostos a discorrer pelo assunto em pauta. 

Veio a discussão,  levantaram o tom da voz para terminar sempre com a dúvida sobre a conta que o garçom  trazia no final. Maria ficou por muitos minutos fazendo contas. Para depois dividir a conta em quatro, pois juntava a sua parte com a de Paulo, seu marido.  Beth ponderava sobre isto e discutia sobre isto também. Cinco pessoas que se reuniam mais de uma vez por semana com os mesmo atos, diria, sociais, intelectuais e cruéis. 

Para no fim se abraçam  como irmãos e seguem em frente. Lidiane  e Beth iriam para casa. Paulo, Maria e Renato seguiram para uma saideira  em algum outro bar. 

Lidiane, sóbria,  queria questionar  sobre porque se submetia sempre a mesma condição.  Mas o sono não deixava. Era uma quinta-feira  e teria que ir trabalhar no dia seguinte. 

Na sexta feira  o dia transcorreu normal. Ela e Maria trabalhavam no mesmo local e conversavam animadas durante o dia. Ela teria um churrasco para ir no sábado, festa de família,  então não iria sair com o grupo. 

Não levantou-se animada pois sabia que os churrasco em família lhe causavam o mesmo desconforto que as saídas com os amigos. Muita bebida, muito barulho e sempre seu tio Arthur arrumava confusão com alguém. 

Pretendia aproveitar o sol na beira da piscina, pensou em levar um livro, mas isto ia parecer que não queria socializar. 

Sua mãe conversava com sua tia próxima a ela e fizeram um comentário comum entre elas.

- Lidiane lembra muito o pai, até as pernas grossas são do pai. Sérgio exibia sempre aquelas coxas grossas e morenas num short branco. Era alvo sempre de brigas - brincou a tia.

- Tudo no Sérgio era motivo de brigas - relatou sua mãe querendo encerrar o assunto. 

Lidiane escutava em silêncio as duas pelo fato de não se lembrar do pai, que morreu num acidente de carro quando ela tinha 5 anos de idade. Dele, só conhecia as histórias que ouvia da família. 

A mãe, que ficou viúva aos 30 anos, nunca mais teve outro homem. A história de amor dos dois vinha desde crianças  e marcada sempre pelo alcoolismo.  Lidiane achava que este era o motivo dela ter enterrado sua sexualidade e feminilidade junto ao corpo do marido. 

Só conhecia histórias e as fotos do pai não lhe eram familiares. Não lembrava daquele homem.

Tinha algumas lembranças como estar na cadeirinha da bicicleta de um homem moreno, ou de estar perto de um homem que cuidava dos animais no quintal. Só lembrava dele da cintura para baixo. Short branco e pernas morenas e grossas. Nada além disso lhe lembrava o pai.

Porém, Sérgio era um alcoólatra. Gastava sempre todo o salário em bebidas. Gostava de ir ao bar com amigos e virar a noite. Tinha outras mulheres que o acompanhavam nas bebedeiras. E sempre finaliza caído na calçada  de algum botequim.  A mãe de Lidiane era chamada para buscá-lo, o que nunca fazia, a pedido dele mesmo. Os irmãos e cunhados que traziam ele de volta a casa. 

E Lidiane, ainda muito pequena, era silenciada pela avó materna para não chegar perto dele. Seu irmão tentava distraí-la com revistas.  Mas a menina tinha enorme interesse pela figura brincalhona e ébria do pai. 

Ele tentou mudar a situação,  fazendo tratamentos, mas sempre tinha uma recaída e voltava a beber. 

A mãe era uma mulher triste que trabalhava muito para pagar as dívidas e manter a casa. 

Lidiane lembrava das atitudes da avó pedindo que  ela ficasse quieta para não chamar a atenção do pai, que constantemente dizia que ia embora levando consigo sua princesa, sua filha.

Ela sabia que havia muito amor que era destruído pela bebida. 

A mãe uma vez lhe contou que quando estava grávida dela, chorava no chuveiro, agachada ao chão em posição fetal, tamanha era sua dor daquela situação em que vivia. 

Sérgio era um homem amado por todos. Quando sóbrio era prestativo e cuidadoso com a casa e com animais. Mas os amigos de bar, as prostitutas, a jogatina,  arruinaram a sua vida. 

Se ganhasse no jogo do bicho, bebia mais e gastava o dinheiro em brinquedos para os filhos. 

Ele representava muita alegria para as crianças e muita dor para a esposa. 

Lidiane se lembrava da manhã  do acidente, ele colocou várias crianças no carro para comprar figurinhas para o álbum que colecionavam. 

Todas as suas lembranças remetem ao álcool e como isto destruiu sua família. 

Ficou com uma mãe sofrida, melancólica e severa. Sua mãe cobrava mais dela do que os apelos da avó para que ela ficasse em silêncio.

Cresceu num ambiente saudosista de um homem que não controlava sua vida. A presença dele estava em tudo. 

Naquele sábado de churrasco em família viu sua mãe chorar quando o tio Arthur, já completamente bêbado, deu um soco num garçom e foi um tumulto enorme. 

Só por um instante ela pensou que não queria mais aquilo na sua vida, não iria mais aos churrascos da família.

Quando chegou em casa, tomou dois comprimidos para dormir e ficou fumando na janela.

Lembrou de uma psicóloga,  já passou por tantas. Sua depressão ia e vinha, nunca incomodando ninguém, sempre silenciada, como aconteceu na infância.  

Agora a estava importunando e não sabia o que era. A frase da psicóloga veio a sua mente .

- Você vivencia um porre seco. Não entendia bem na época. Mas agora faz sentido.

Por isso, quando na terça feira recebeu um telefonema de Renato para jantar, não ficou muito empolgada. De alguma forma, agradar os outros não era mais sua prioridade. Trabalhou aquele dia  envolta de seus pensamentos mais íntimos. 

Queria lembrar algo de seu pai mas não conseguia . Ele só se manifestava no tio Arthur e nos amigos de bar, sentenciou. 

À noite,  já no restaurante, como já era previsto, Renato já estava embriagado. A eles, se juntou mais um amigo da faculdade dizendo que não ia jantar pois estava sem grana, mas pediu uma cerveja. Renato consolou o amigo:

- A gente acerta depois.  

Um episódio deflagrou  a irritação ebria de Renato. Algumas moças em uma mesa riam alegremente e ele cismou que riam dele. 

- Eu vou lá falar com elas.

- Renato, elas nem estão olhando para cá. 

E por cima do ombro de Lidiane ele começou a discussão dizendo que sim, ele parecia com aquele político famoso e o que elas tinham com isto?

Renato sempre se irritava quando faziam tal comentário sobre sua aparência . 

O mesmo pensamento que tivera no churrasco voltou a mente de Lidiane, não queria mais vivenciar aquelas situações. 

Talvez voltasse a fazer terapia, podia estar ficando depressiva de novo. Talvez seu pai sofresse de depressão,  pensou por um momento. E nunca ninguém percebeu. 

Por fim, no meio da cena criada por Renato, ela levantou pegando a mochila na outra cadeira e saiu do restaurante sem se despedir. 

Não importava como a conta seria paga ou como Renato voltaria para casa. 

Só sentiu o frescor da noite bater em  seu rosto, enquanto caminhava sozinha pela rua escura à procura de um táxi para levá-la para casa. Estava voltando para casa sozinha aquela noite e se pegou sorrindo com este fato. 

FIM 

 

Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 26/03/2024
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