Ana Lago de Luz

E na beleza das flores... e nas ondas do mar!

Textos


Desafio 6 - uma memória infantil 

 

 

A Tosse

Carolina tinha na lembrança  sua primeira casa com quintal. Repleta de árvores e com muito espaço para andar de bicicleta. O que hoje parece pequeno na casa da sua mãe, era-lhe na infância um enorme espaço para brincadeiras.

Tinha duas mangueiras, uma goiabeira, um pé de abacate, um de pé de carambola, um coqueiro e no meio às folhagens crescia uma árvore enorme de flamboyant, com suas flores avermelhadas. 

Ela voltava da escola, almoçava e pegava logo a bicicleta para dar voltas em torno da casa. 

Carolina e o irmão mais velho eram proibidos de brincar na rua enquanto a mãe não chegasse do trabalho e para ela isto não era um problema pois tinha tudo em seu quintal. Para o irmão era mais difícil pois queria ir para a rua soltar pipas. 

Carolina arrumava suas bonecas embaixo da mangueira e começava a dar voltas em torno da casa com sua bicicleta cor de rosa. 

De um lado da casa era o muro para a casa de sua amiga de escola que, às vezes,   pulava para brincar com ela. Do outro lado era de uma família que as crianças eram menores que ela. Só os encontrava ao entardecer, na rua, andando em seus pequenos carrinhos.  Gostava muito  da Jaque que era 4 anos mais nova que ela. 

Mas o que ficou mais na sua lembrança era a tosse do avô da Jaque vinda da janela lateral, que do corredor, podia-se ouvir claramente.  Era uma tosse seca e contínua. Era insistente.  

Para não incomodar fazia apostas consigo mesma. Quantas voltas dará sem ouvir a tosse ? Tinha dias que em todas as voltas ele estava tossindo, tinha dias mais calmos. O mesmo ocorria quando estava brincando com as bonecas. Contava de 1 a 100 para ver quando ele começava a tossir. Quase nunca chegava aos 100 e ele já começava a tossir. 

O avô da Jaque era um senhor idoso e quando Carol via ele passar pelo portão, achava que era o homem mais velho do mundo. Calvo, uma barba branca,ele era  um pouco curvado e magro. E sempre com um cigarro entre os dedos. Era uma figura peculiar e que chamava muita a atenção de Carol por fazer parte das suas tardes de brincadeiras. E das noite em que, debruçada na janela da sala , ouvia do quarto escuro ele tossir mais ainda.

Ainda perguntou certa vez à sua mãe o motivo.

- Por que ele tosse tanto, mamãe? 

- Ele está doente. Não se preocupe. 

- Queria pedir a ele para se cuidar.

- Ele está se tratando, e tudo ficará bem. 

Se a mamãe  disse que tudo ia ficar bem , era o certo a acontecer.

Continuava a pedalar a bicicleta em torno da casa, contando quantas voltas daria sem que ele tossisse. 

Carol presenciou um dia em que brincava no portão  da Jaque, o avô saiu e tossir tanto, que ao pegar o lenço no bolso e passá-lo pela boca, este ficou sujo de sangue. Ele retornou a casa, deixando o cigarro cair no chão, também sujo de sangue. Naquele dia as crianças foram recolhidas mais cedo e sua mãe fechou a janela da sala para que Carol não ficasse espreitando. Ela entendia que a pequena menina era muito focada, mesmo sem entender direito, no que estava acontecendo na casa ao lado. 

Até que um dia, envolvida com as brincadeiras infantis, não se deu conta que não havia barulho de tosse. Andou com a bicicleta sem perceber  que da casa vizinha não havia nenhum som. Apenas cumpriu seu papel de criança.  Mais para o fim da tarde começou a ameaçar um temporal. O céu ficou muito escuro, e estava ventando muito. Em minutos o temporal ia desabar. Já tinha guardado os brinquedos e entrava com a bicicleta para a varanda. Num trovão muito forte se deu conta que o avô da Jaque não estava tossindo , estaria finalmente curado? Mas no meio da chuva  a mãe da Jaque entrou pela sua porta da sala, fechando o guarda chuva  e desabando no sofá aos prantos.

Carol não queria ser percebida na sala então ficou quieta junto a televisão. Sua mãe  não percebeu sua presença.

Só lembra do choro compulsivo da mulher sentada no sofá. E sua fala difícil de compreender.

- Ele está morto.- foi só o que Carol pode entender.

O avô  da Jaque tinha morrido em casa, estava muito fraco e se recusava ir ao hospital.Teve algum movimento de pessoas na casa no início da noite. Carol estava atenta a tudo. E logo na hora de dormir ainda perguntou para a mãe: 

- O avô da Jaque foi para o céu? 

- Sim querida ! 

- Ele sabia o caminho da casa dele até o céu? Não tem que ir para o hospital primeiro ? 

Sua mãe pensou em várias formas de responder aquela pergunta. Na verdade o corpo ainda estava na casa,  a transferência seria de manhã. Para não impressionar a criança apenas respondeu:

-Ele sabia o caminho sim. 

Carol dormiu serenamente aquela noite.

Na tarde do dia seguinte viu sua mãe sair vestindo uma roupa preta. Ela não foi trabalhar naquele dia.

Alguma coisa em Carol, talvez fosse o silêncio, dizia para que ela não fosse brincar. Ficou sentada  na varanda trocando a roupa das bonecas. Ainda pegou-se a contar de 1 a 100. Mas perdeu-se na conta. Por alguns dias não viu a Jaque no portão com seus irmãos.  Só o silêncio. 

Na lembrança de Carol ficou marcada a tosse daquele senhor que as vezes, sorridente, cumprimentava ela do portão: 

-.Menina da bicicleta.

Carol sabia que na solidão do quarto, agonizando, ele também percebia ela. 

FIM

 

 

Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 25/03/2024
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