Ana Lago de Luz

E na beleza das flores... e nas ondas do mar!

Textos


Oficina de Contos - módulo 1: cacterizar totalmente um personagem 

 

 

A tia Marli

 

Por Ana Pujol



 

Ela acordou cedo como de costume e logo arrumou a cama alisando bem os lençóis  e cobrindo com uma colcha florida. Depois foi ao banheiro lavar o rosto e escovar os dentes. Antes de preparar o café,  penteia cuidadosamente os cabelos prendendo-os numa trança. Ainda passou pelo quarto da filha que já tinha saído para o trabalho e observou a cama desfeita, a concha amarrotada por sobre os lençóis.  Pensou em como ela poderia dormir todas as noites sobre a colcha, mas se quisesse contestar pela milésima vez teria que esperar até anoitecer quando ela voltasse do trabalho e da  faculdade. Entrou no quarto e ajustou a colcha sobre o lençol.  

Foi para a cozinha arrumar a mesa do café e esperar D Maria, sua empregada, chegar com o pão. 

Sabia que seria um dia intenso mas não queria mudar em nada sua rotina. 

D Maria chegou com o pão dando um sonoro bom dia. Colocou o saco na mesa e foi para a cozinha. Ela com cuidado despejou os pães na cesta e sentou para tomar seu café em silêncio. Não deixava cair uma migalha fora do prato e limpava a boca constantemente com o guardanapo. Olhou para D. Maria encostada na porta da copa com um copo de café  e abocanhando  um pedaço de pão deixava cair migalhas pelo chão. Seu olhar foi percebido pela empregada que logo disse:

- Eu já vou varrer Marli. 

D Maria já trabalhava em sua casa a quase 20 anos e eram bem íntimas e conheciam muito uma a  outra. 

Acabou o café folheando o jornal da manhã.  E logo em seguida calçou um par de meias amarelas para ir varrer o quintal .

- Deixa que eu faço  isto Marli. 

- Não, eu mesma faço.  Vc molhe primeiro as plantas, têm feito muito calor . 

- Hoje é  que o pessoal da escola vem ? 

- Sim,tem que estar tudo bem limpo antes das 3h. 

Depois do quintal limpo e D Maria ainda molhando as plantas voltou para o quarto para se arrumar para ir ao supermercado. Colocou um vestido com estampa floral em tons de lilás. Calçou uma sandália lilás e colocou dois prendedores de cabelo lilás. Tudo combinado. Arrumou a trança e pegou em cima da cômoda sua carteira . Passou pelo jardim bem lavado e não escutou D Maria dizer: 

- Onde vai assim toda arrumada ? - ela estava de costa . E a Tia Marli tinha um problema de audição e fazia leitura labial instintivamente, precisava que a pessoa olhasse  para ela poder ler seus lábios. Saiu pelo portão sem dizer nada. 

Na rua era conhecida por todos: vizinhos, parentes, ex-alunos e comerciantes. Era muito querida por todos e tinha um largo sorriso no rosto. Diferente de casa, onde se preocupava com os mínimos detalhes em tudo, na rua só queria ser amável com as pessoas. Porém havia um problema, com a surdez ela falava muito alto e isto incomodava um pouco. Já tentou aparelhos auditivos mas não se adaptou. Dizia ter um zumbido no ouvido parecido com um apito de panela de pressão.

Mas amável como sempre, chega no caixa do supermercado com as compras e diz em voz alta.

- É isto que vou levar hoje - assustando a mulher que estava atrás de si.

- Cruzes, precisa gritar ? - a mulher se incomodou muito.

- Como ? - disse docemente e pode ler no lábios da menina do caixa, que já a conhecia.

- Ela é  surda.

Sempre a mesma coisa. Deveria deixar D. Maria ir  à rua mas não queria se privar dos encontros que tinha.

- Tia, lembra de mim? Fui seu aluno na terceira série- claro que se lembrava

- Tia Marli, meu filho estudou  com a senhora. Hoje é  sargento do exército 

- Que beleza, ela dizia.

Ou os encontros com o dono do sacolão .

- Ih aí,  tia Marli? E o nosso Flamengo? 

- Tá difícil, meu jovem - procurando seus lábios para ler o que dizia. 

Chegou em casa lembrando da última consulta médica onde a doutora pediu para ela falar baixo

- Mas eu sou surda - explicou

- Mas eu não sou ! 

Os episódios aumentavam a cada dia. Até a filha acenava com a mão pedindo para ela abaixar o tom da voz .

Ela almoçou e ficou esperando a hora de receber as visitas. Era para ser uma surpresa, mas sua irmã, que também trabalhava na escola, já tinha revelado.

-  Marli elas estão muito envergonhadas de não terem feito uma festa na sua aposentadoria. Virão para se redimir.

Não estava preocupada. Tinha cumprido a sua missão. Trabalhou como professora primária desde os 21 anos de idade com muito esmero.  Ainda tinha seus cadernos de planejamento escritos a mão com uma letra perfeita e desenhada. Cuidava dos murais da escola com maestria e das festas comemorativas. Por fim, já fora da sala de aula, aposentada na primeira matrícula,  cuidava da merenda escolar, fazia todos os cálculos, os pedidos e acertos. Era um trabalho mais solitário que exercia com destreza.

Às 2h tomou um banho mas não lavou a cabeça. Refez a trança no cabelo comprido e grisalho. Era uma promessa que fizera, não cortaria mais o cabelo, desde que o filho mais velho retirou um tumor maligno no rim. 

Colocou um vestido preto com estampa de flores amarelas, colocou uma sapatilha amarela e pregadores amarelos no cabelo. Para finalizar uma pulseira de bolinhas também amarela. Como sempre, tudo combinado.

Passou pelo quarto da filha para ver se D. Maria tinha arrumado a escrivaninha. Que nada, continuava abarrotada de livros e folhas. Ela só retirou os papéis de bala e biscoitos espalhados  e esvaziou o cinzeiro. Não conseguia suportar aquela bagunça.  Com certeza a noite discutiriam.  Mas já tinham discutido na outra noite, quando a filha sentou no chão da sala, em frente a TV e começou a furar folhas para por no fichário.

Marli somente perguntou:

- Não vai dar uma varridinha na sala?

Já eram mais de onze horas da noite e começaram a discutir. Não queria repetir esta noite.

Sentou-se confortavelmente na  poltrona da sala e começou a bordar em  vagonite. Esperando a chegada das pessoas.

Tudo preparado. Salgadinhos e um pudim para oferecer às visitas.

D. Maria encostada na parede da sala também aguardava. Ficaram em silêncio durante todo o tempo que passou rápido e elas estavam atrasadas. Só quando deu 20 para as 4h da tarde ouviram chamar no portão. 

Eram cinco pessoas, a diretora da escola, a sub diretora , a secretária e duas professoras.

- Surpresa! - ela olhou animada sorridente.

Entre beijos e abraços ela explicou que apenas estava bordando e não esperava por ninguém. 

Na verdade, todos sabiam que ela estava esperando, mas sabiam manter a farsa. E todos só queriam que o momento acabasse. 

- Tia, trouxemos presentes. - falou uma das professoras.

- Todos participaram, disse a diretora. 

- Vamos, tia, abre! 

Eram 3 embrulhos. Uma delicada caixinha de música que funcionava como porta jóias, uma bolsa preta e uma sapatilha verde com um lacinho. 

Ainda pensou no meio do falatório que quase não entendia, por que a bolsa não deveria combinar com a sapatilha ?  Mas pensaria nisso depois. 

Foi oferecido o lanche. E todas conversavam animadamente entre si. A tia Marli não participava muito por não entender o que falavam. Ria alto quando elas riam também.

Somente quando a secretária falou diretamente a ela,  pode compreender.

- Tia, a senhora saiu rápido demais. Foi tudo muito recente, não é? - querendo se justificar porque não tivera a festa na escola.

- Já estava na hora.

De cabeça baixa a diretora ouviu uma das professoras  dizer

- Foi o episódio do gás, não foi ? 

A tia Marli , adorada por todos, procurou o olhar da diretora e não encontrou.

O que tinha ocorrido era que estava em sua sala, fazendo cálculos no final do expediente e uma merendeira entrou e disse que o gás tinha acabado e se retirou logo em seguida. Marli achando que era apenas uma despedida acenou com as mãos. 

No outro dia não havia gás para a merenda das crianças, o que deixou a diretora enfurecida. Marli falhou pela primeira vez e decidiu pela aposentadoria proporcional. 

Voltou a dizer : - Já estava na hora. 

A visita não demorou nem uma hora, ameaçava cair um temporal e esta era uma boa desculpa para irem embora. Todos se despediram formalmente elogiando o pudim que D Maria fizera. 

A tia Marli levou- as ao portão que entraram rapidamente em seus carros.

Antes de fechar o portão viu que um rapaz passou de bicicleta e acenou para ela.

- oi , tiaaaaaa.! 

Ela entendeu o som da tia e acenou de volta. 

A sala já estava arrumada quando entrou e os presentes em cima da sua cama. 

Tirou os sapatos,para  calçar meias cor de rosa e foi varrer o quintal

- Mas Marli, vai começar a chover - ainda disse D. Maria.  Ela não ouviu. 

 Mesmo sabendo que as folhas das árvores iam cair com o vento do temporal ia varrendo o quintal e fazendo vários montinhos de lixo para recolher depois com a pá. A chuva não demorou para cair. 

Fim


 

Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 17/03/2024
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