Ana Lago de Luz

E na beleza das flores... e nas ondas do mar!

Textos


Desafio 4 : escrever um conto passado dentro de um ambiente : casa, apartamento, sítio, etc..

 

 

A morte de tio Emílio 

               Por Ana Pujol 

 

Quando entrei pelo portão reparei que a porta da sala estava aberta. Passei pelo jardim muito bem cuidado e o chão de pedras ainda molhado da forte chuva de verão que acabou de cair. E o calor ainda era insuportável. 

Entrei pela sala e avistei meu primo em frente da televisão como sempre ficava à tarde. E o som vindo da cozinha, da panela de pressão, fez com que eu soubesse que D Maria ainda estava lá. 

Da sala muito bem arrumada e ainda com cheiro de lavanda como se a pouco tivesse sido limpa,   passei para o quarto. 

Na cama de solteiro, naquele quarto abafado, estava o nosso vizinho, que era um bombeiro aposentado, sobre o corpo do meu tio Emílio,  tentando reanimá-lo com uma massagem cardíaca.  Ele apenas me disse:

- Abre essa janela para entrar um pouco de ar. E continuou sua árdua tarefa. 

Enquanto eu abria a janela de madeira,  D Maria entrou com lágrimas nos olhos e totalmente descontrolada. 

- Ele chegou bem em casa, disse que eu podia limpar a sala mesmo com Toninho vendo a TV . E veio para o quarto. Eu só ouvi ele suspirar bem alto. 

Ele não reagia, já parecia morto, mas o Sr Inácio continuava na tentativa de reanimá-lo . 

Passei por D Maria para ver Toninho que sentado na cadeira de rodas ria muito alto com as cenas do Programa do Chaves na TV. Ele era bem mais velho que eu mas como tivera uma paralisia  cerebral mantém-se num corpo sem mobilidade e com uma mente infantil. Meus tios conseguiam se comunicar com ele, eu nem tentava entender os grunhidos dele. Mas tinha certeza que ele entendia o programa que assistia e se divertia com aquilo.Dava umas gargalhadas altas descompassadas e movimentava os braços  sem mobilidade. 

Fui até a porta do quarto do Toninho para fechá-la, logo entraria mais gente na casa. A SAMU foi acionada. 

O quarto não tinha nenhum traço marcante ,  cama, armário e cômoda. E uma cadeira de rodas  de higiene. As paredes limpas, sem quadros, a cômoda sem nada em cima.  Só pude perceber, a flâmula  do time de futebol perto da cama. Ele amava futebol, torcia para o Botafogo. Fechei a porta devagar.

Eu estava irritada com o calor e o barulho da panela de pressão muito mais do que com as gargalhadas do Toninho que enchiam a casa. 

Voltei para o quarto do tio Emílio. O velho bombeiro aposentado já não fazia tanto esforço,  fazia  uma pausa de vez em quando para medir o pulso do titio. 

Eu não acreditava que ele morreria pois já tinha sofrido um acidente de carro terrível, onde minha tia Elza fatalmente morreu, e ele saiu ileso. Eu acreditava em toda sua força e poder. 

D Maria estava atordoada, tinha subido o muro dos fundos da casa para me chamar na casa de trás e agora parecia um pouco cansada.

- Será que o feijão não está bom? - perguntei a ela na ânsia daquele barulho parar. 

Fomos à cozinha e ela desligou a panela.  A porta dos fundos estava aberta e dava para ver a minha casa. Eu só não queria estar ali. Minha casa demonstra-se acolhedora e silenciosa. 

Voltei mais uma vez ao quarto, e desta vez o Sr Inácio estava sentado no chão,  encostado no armário. 

- Ele está morto .

Uma tristeza tomou conta de mim. Tão alegre e dedicado ao filho especial. Meu coração acelerou quando D. Maria entrou no quarto e gritou :

- Não. Não pode ser. Ele era tão bom patrão.  Como morreu assim tão rápido? 

Ninguém respondeu. E Toninho, lá na sala, silenciou  as gargalhadas assustando- se com o grito dela. 

O tio Emílio teve um enfarte fulminante.  Esta era a questão.

Sr. Inácio e eu fomos para a sala, D. Maria cozinha. Nós sentamos, jogando o corpo no sofá macio, calados. Ela voltou:

- O feijão ainda não cozinhou. Vou ligar a panela de novo.Não é  melhor cobrir o morto ? 

Continuamos calados, logo a panela iria voltar a apitar .

- Traga-me um lençol, D Maria - falei no automático. 

Fui ao quarto e cobri levemente o corpo do meu tio que já começava a esfriar. Voltei para a sala. Sentei-me. Logo o SAMU iria chegar e curiosos também. Tinha que ligar para as filhas dele em Brasília. Provavelmente Toninho iria morar com uma das irmãs.  

Uma mudança radical estava para vir na sua vida. 

A panela de pressão voltou a apitar.  E Toninho  voltou a gargalhar com o programa da TV, de forma débil e bem alto, alheio ao ocorrido . 

Fim

 

Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 16/03/2024
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