Ana Lago de Luz

E na beleza das flores... e nas ondas do mar!

Textos


 

Desafio de Contos - Segundo Desafio 

Escrever um conto com ate 6000 caracteres que inclua no inicio, meio ou fim o seguinte trecho do conto O Natal na Barca de Lygia Fagundes Teles 

 

¨Voltei-me para a mulher que embalava a crianca e me observava com um meio sorriso ¨

 

 

A cena 

 

Por Ana Pujol 

 

Já era de manhã quando saí do trabalho. Eu tinha preenchido todos os formulários. A manhã estava fria e uma chuva fininha insistia em cair. Senti o frio entrar pelo nariz. Já estava trabalhando a mais de vinte e quatro horas e a temperatura caiu bastante. Estava congelando dentro da jaqueta jeans. Mas não havia outro jeito, eu teria que caminhar até o metrô pois deixei o carro na oficina. 

Depois de uma noite tensa e sem dormir pensei que o café quente que tomaria ia me recompor mas não acontecera, eu estava muito cansado e de mau humor. 

Quando cheguei perto da avenida voltou a imagem daquela cena terrível.  Eu me ocupei um pouco dela e tentei pensar em outra coisa. O frio iria me distrair - pensei.  

Porém  neste estado meio aéreo fui atravessar a avenida, naquela hora não estava com o trânsito intenso, quase fui atropelado por um carro. 

- Cacete! - esbravejei , xingando o motorista.

A cena passou pela minha cabeça novamente e eu me calei. 

Realmente senti uma pontada de dor na testa,  acima dos olhos e foi a primeira vez que pensei: estou precisando me aposentar. Eu pertencia a outra geração e as coisas mudaram muito. E não era mais um cara durão.  Com o tempo a emoção é  deixada de lado e ficamos meio que amortecidos mas alguma coisa estava acontecendo nos últimos tempos. Eu voltava a dar importância demais às coisas.

Antes de eu descer as escadas do metrô,  uma criança pequena veio ao meu encontro e esbarrou em mim. Ainda pude ouvir a mãe gritar - Cuidado, menino, olha para onde anda. Mas foi inevitável. Senti as pernas estremecer. E  encolhi um pouco os joelhos com o tropeção . Quando esquentar  tudo ia passar, pensei . 

Desci as escadas para o metrô esfregando as mãos uma na outra. Realmente estava frio. Porém dentro do metrô ficou mais acolhedor e longe da chuva fina algum ânimo surgiu. 

Reparei que já tinha um trem na plataforma e corri pois não queria perdê-lo. Chegaria logo em casa. Mesmo que minha esposa e filhos já tivessem saído para trabalhar ou estudar, a ideia de deitar a cabeça no travesseiro da cama era ideal.  

Eu me senti aquecido pela primeira vez naquele dia quando entrei na cabine e a porta fechou atrás de mim. Agora era só aproveitar o dia de folga. Dormir, ver na TV um show do André Rieu e sentar um pouco  ao piano e tocar músicas de ouvido , já que não era muito bom em seguir as aulas do meu professor particular, nesta idade eu já não era tão disciplinado. 

O trem estava vazio, estava no contra fluxo então não estava abarrotado de gente indo trabalhar. Sentei-me com conforto, não havia ninguém ao meu lado. E pousei a cabeça na janela. Aquecido afinal.

Foi neste instante que a percebi ,  voltei-me  para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Ela parecia tão dona de si e ao mesmo tempo tão frágil. As mãos que seguram a criança eram de quem trabalhava muito, porém tinha toda a segurança do mundo. Não sei se retribui o sorriso pois naquele momento aquela cena tenebrosa passou pela minha mente como uma agulhada. Tentei desvencilhar aquele pensamento mas não conseguia.Ela me observava e eu tentava buscar nos traços da criança adormecida algo para parar de doer tanto a minha cabeça. Ficamos assim por alguns momentos. Seu rosto, seu sorriso revelavam uma história de vida e eu amaldiçoado por pensamentos. 

Ela se levantou junto comigo na mesma estação, trazia uma bolsa pesada. Eu me aproximei para ajudá-la. Ela aninhou a criança nos braços e eu segurei a bolsa. Não nos falamos em momento algum. O trem parou. Eu a amparei com uma das mãos e descemos para a plataforma. 

Ainda sem nos falarmos, ajudei ela a se compor com a criança e a bolsa. Sem dizer nada, além daquele sorriso nos lábios ela desapareceu entre as pessoas.

Nunca saberei quem era aquela mulher. Nunca mais a veria e nem a criança que serenamente dormiu o tempo todo, se mexendo, de vez em quando, para se aconchegar ao ninho materno.

Foi quando me vi encostado numa pilastra da plataforma revendo em minha mente tudo que se passou no início da noite passada. Sim, agora eu tinha certeza que deveria me aposentar. Meu tempo passou, não era mais o homem destemido e audaz. 

Fiquei  tempo demais naquela delegacia. O tempo para que as emoções voltem a povoar minha mente.

Tinha sido chamado no início da noite para averiguar um homicídio.  Eu como delegado, precisava estar na cena do crime e relatar o ocorrido. Era o que eu fazia sempre no automático, mas de um tempo para cá estava me importando demais. 

Eu não via mais a mulher na plataforma e não conseguia seguir o meu caminho. 

Em minha mente só a cena que presenciei.  Um quarto abafado com as janelas fechada de um minúsculo apartamento e deitados numa poça de sangue sobre a cama , uma mulher jovem , grávida, com pelo menos sete facadas no peito e na barriga e ao seu lado uma criança de não mais de um ano de idade, jazia também morto, igualmente esfaqueado. Não havia tensão em seus semblantes. Pareciam dormir. 

O marido e pai,  o assassino fugiu.  Havia muito coisa a se fazer. O pessoal da perícia já estava no quarto e um policial já colhia relato de testemunhas. 

Por um momento tudo ficou silencioso e minha mente registrou o ocorrido para todo o sempre. 

Quando finalmente deitei no meu travesseiro, com um peso enorme daquela minha existência, só me veio à mente a mulher do metrô  que embalava a criança nos braços.  

Fim

 

 

 

 

Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 09/03/2024
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